O Estado de S.Paulo - 27/01
A té o cachorro do meu anfitrião deu um basta e me puxou de volta para dentro da casa. Sua atividade favorita do dia, a caminhada matinal que termina com a refeição, durou 5 minutos, a ventania jogando neve nos nossos olhos fechados. E olha que ele não leu o termômetro digital do canal do tempo marcando -15C. O cachorro, privado das corridas atrás da bola, me olha como se perguntasse o que você planejou para o meu domingo? "He's bored," (Está entediado), vem o diagnóstico do dono.
Pergunto ao meu anfitrião porque não fica mais tempo na casa. Argumento que a neve de Manhattan já adquiriu aquela cor cinza lama, com tons de amarelo do corrosivo sal químico que os edifícios jogam em quantidade absurda, para evitar processos por escorregões, e queima as patas dos bichos. "Se eu ficar aqui sozinho vai ser um tédio," ele responde, contemplando blasé a vista espetacular do inverno no campo. Lareira, excelente biblioteca e uma geladeira recheada não seguram um escritor neste paraíso.
Chegam os e-mails de domingo, o equivalente a espreguiçar com palavras, e me comunicam que a sensação térmica de 45º C no Rio vai prender todo mundo em casa. "Que tédio," reclamam.
Estamos mais vulneráveis ao tédio hoje? A fratura da atenção entre múltiplos gadgets eletrônicos, a expectativa de entretenimento externo constante, tudo isso nos tornou incapazes de resistir a breves momentos de enfado?
Não necessariamente, afirma Peter Toohey, um historiador especializado em literatura greco-romana da Universidade de Calgary, no Canadá. Você compraria um livro com a palavra tédio na capa? Pois Toohey escreveu um tratado sobre o tédio que pode ser lido sem o menor risco de sofrer do mal do título, um mal que o autor garante, em doses curtas vem para o bem. O livro de Toohey, Boredom, a Lively History (Tédio, uma História Animada) argumenta que, ao contrário da noção de que o tédio é um mal do Iluminismo e nasceu junto com o lazer, esta sensação é tão antiga quanto o homem urbano. A palavra 'boredom' só aparece na língua inglesa no século 19 e tem parentesco com o 'taedium' em latim, que vem de 'taedere', cansar.
Em 1854, uma escavação na Itália revelou uma inscrição em latim: "Para Tanonius Marcellinus", dizia, "porque ele resgatou a população do tédio interminável." Não se sabe quem foi Marcellinus, o eminente cidadão de Beneventum, mas a ideia de uma cidade inteira descontente a ponto de homenagear quem a livra do tédio está registrada.
Toohey trata dos diferentes tipos de tédio descritos nas últimas décadas, o simples, o crônico, que pode ser um sintoma da depressão, e o existencial, como o de A Nausea de Jean-Paul Sartre. Ele acha que, por falta de melhor conhecimento, colocamos tudo no mesmo saco da palavra tédio. O tédio crônico, por exemplo, vem de uma deficiência de dopamina, um neurotransmissor que tem papel importante na nossa motivação.
O autor explora o tédio na literatura e escreve que ninguém menciona tanto o assunto quando Chekhov, com seus personagens mortos de tédio nas vastas propriedades no campo. O personagem mais associado a tédio na literatura russa é o Oblómov, de Ivan Gontcharov, que decide não sair mais da cama quando a Rússia está para abolir a servidão. Mas há quem argumente que Oblómov é mais um niilista decadente do que um enfadado.
E por que Peter Toohey considera o tédio, em doses curtas, um importante aliado? Se quando sentimos um gosto esquisito não ingerimos um alimento estragado para não adoecer, ele acredita que o tédio é um sistema de alerta para uma situação psicológica, antes que ela se deteriore. Se você chega a uma festa e dá de cara com um conhecido que não para de falar, vai tentar ficar longe dele. Da mesma forma, vai tentar se defender de outras situações em que a monotonia ou a repetição traga enorme desprazer. A rotina confinada e previsível é a receita para o tédio. Depois de 6 dias presos em casa por causa de temperaturas extremas, a luz vermelha do enfado acende e nos faz recorrer a atividades com maior gasto de energia, além da leitura e de assistir à TV.
Peter Toohey não acredita que a nossa expectativa de engajamento externo constante tenha alterado fundamentalmente a sensação de tédio. O tédio existencial, como o descrito por Sartre, é mais fruto de um contexto cultural. Mas o 'bom' tédio que o autor defende continua conosco, tanto quanto outras emoções extremas e mais examinadas, como o ódio e o amor.
Mas acredito, sim, que temos mais medo do tédio comum. Quando vejo num restaurante um casal colocar o guardanapo no colo com a mesma naturalidade que coloca um tablet na mão do filho pequeno penso: ao proteger a paz da sua refeição, estão ensinando a ele que não é possível sobreviver a uma hora sem estímulo externo. Imaginem um cenário em que as crianças só pudessem se distrair com brinquedos disponíveis há 150 anos. Seria tema para um filme. De terror.
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