FOLHA DE SP - 09/01
Smartphone é mais saudável que heroína, mas heroína é mais poética que smartphone
Alguns leitores me pediram para contar mais sobre a vigília de poesia (num sentido que inclui música, dança e performance) dos dias 1º e 2 de janeiro na igreja de Saint Mark, no East Village de Nova York.
Na origem, há as leituras públicas nos cafés do bairro nos anos 1950 e no começo dos 1960. Em 1966, o Poetry Project (projeto poesia) se formalizou, e as leituras se mudaram para a igreja anglicana de Saint Mark, cujo reitor era um protetor das artes. Em 1974, foi a primeira maratona de poesia no Ano-Novo; leram seus poemas William S. Burroughs, John Cage, Gregory Corso, Allen Ginsberg, Peter Orlovsky e Patti Smith --isso, para lembrar os mais famosos.
Na semana passada, era o quadragésimo aniversário da maratona. Cento e quarenta poetas leram seus poemas. Muitos homenagearam o amigo Lou Reed, que acabara de morrer. Fiquei seis horas; escutei, por exemplo, Philip Glass tocar piano e Patti Smith ler algo do novo livro que está escrevendo (duas páginas sobre o fim de "Blade Runner - O Caçador de Androides", de Ridley Scott).
Anne Waldman é uma poeta ligada aos beats desde o começo. Sua performance me lembrou as leituras de Allen Ginsberg que presenciei nos anos 1960 em Nova York e em Milão --não tanto pelos temas quanto pela entonação profética. Pensei que não deve ser fácil fazer poesia na sombra de "Howl", o grande poema de Ginsberg ("Uivo", mas eu preferiria gemido ou berro).
"Vi os melhores espíritos de minha geração destruídos pela loucura, famélicos histéricos nus, se arrastando na primeira luz do dia pelas ruas dos bairros negros à procura de uma seringa raivosa"¦". Aquele começo, ainda hoje, força qualquer leitor a contar, do seu jeito, o desperdício de sua geração. Mas o drama do sacrifício dos melhores, neste começo de milênio, parece fazer falta.
Cadê a heroína injetável dos anos 1950 e 1960? Cadê a Guerra do Vietnã, que devorava as vidas nos anos 1970? As guerras de hoje são menos imediatamente absurdas; no mínimo, elas invocam uma necessidade de defesa. A geração dos anos 1980 esbarrou em outro desperdício: todos, naquela década, vimos os melhores morrendo invadidos pela Aids, como se um demônio invejoso se vingasse dos prazeres que eles tinham ousado se permitir.
E agora, nos últimos 15 anos, o que sobrou para alimentar a ideia do destino trágico dos melhores (e, eventualmente, da gente)?
Hoje, é mais fácil esquecer a tragédia e escolher o sarcasmo: os melhores espíritos de nossa geração, em vez de se arrastar pelas ruas dos bairros negros, passam a noite na fila para ser os primeiros a comprar um novo smartphone.
Talvez seja melhor assim: smartphone é mais saudável que heroína (não é?). Mas, convenhamos, a heroína é muito mais poética do que o smartphone: ainda vale entre nós o modelo romântico do artista atormentado pelo trágico de sua condição.
Justamente, no dia 4, fui assistir à nova versão do musical "Pippin", de Stephen Schwartz e Bob Fosse (que foi coreógrafo da montagem original, mas também contribuiu ao texto). "Pippin" foi montado no Brasil (de maneira memorável, segundo me dizem) por Flávio Rangel, em 1974, com Marco Nanini e Marília Pêra.
O jovem Pippin quer ter uma vida justificada por empreendimentos extraordinários; ele tem a certeza atormentada de ser destinado a coisas maiores do que a simples repetição da vida dos pais.
No fim, todos esperam que Pippin queime como um Ícaro que quis voar alto demais; com isso, ele será lembrado por sua bela morte. Na versão original, Pippin renuncia a seus sonhos e se deixa enredar na banalidade cotidiana. Na nova versão, ele também desiste, mas o enteado dele toma seu lugar e começa a sonhar com as mesmas glórias confusas.
O musical é assim uma meditação (divertida e séria) sobre as inevitáveis aspirações abstratas da juventude, que nos afastam da vida --pois, diante delas, tudo perde relevância.
Os furores da juventude e o ideal romântico do artista (que, de preferência, aliás, deve morrer jovem) nascem na mesma época, no fim do século 18, quando a liberdade e seus sonhos (de um futuro sempre extraordinário) tornam-se, de fato, possibilidades concretas e inquietantes.
Pergunta aos pós-românticos: como se apaixonar pela vida esperando dela apenas o ordinário?
Nota: para conhecer o Poetry Project, http://poetryproject.org/history/insane-podium.
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