O Estado de S.Paulo - 09/01
Com a aproximação das eleições, ganha estridência o embate polarizado entre os cabos eleitorais de uns e outros. Nada mais natural, nada mais previsível - e nada mais medíocre. Quando rótulos ideológicos se convertem em xingamentos, a escalada de ofensas não apenas não esclarece coisa nenhuma, como agrava a confusão geral, além de incentivar a idolatria dos salvadores da Pátria e o irracionalismo ensandecido. É num ambiente assim, pautado por fanatismos - às vezes forjados, outras vezes sinceros -, que autoridades condenadas por crimes de corrupção podem ser endeusadas como se fossem figuras heroicas (o que se vê nas franjas da candidatura de Dilma Rousseff) e que notórios coletores de propinas são rifados como se nunca tivessem feito parte da agremiação (postura mais ou menos endêmica nas hostes tucanas).
A guerra eleitoral tem disso, sempre teve disso, mas, convenhamos, onde a polarização desembestada dá as cartas, fenece a utopia iluminista segundo a qual o livre debate de ideias seria capaz de gerar a luz, a razão e a verdade. Entregues aos cabos eleitorais e às propagandas partidárias, as eleições não passariam jamais de uma luta de morte entre mentiras descomunais, dotadas de efeitos especiais, ainda que eventualmente motivadas por boas intenções. Se as eleições são melhores do que isso - e elas têm sido -, o mérito é, ao menos em parte, da imprensa.
Por não ter parte com a lógica interna dos partidos, a imprensa deveria ser capaz de convidar o eleitor a pôr os pés no chão e avaliar a procedência de cada um dos argumentos, a viabilidade de cada proposta, a sustentabilidade de cada estratégia, ajudando a sociedade a separar as pirotecnias verbais das ações realmente possíveis para um mandato no Poder Executivo. Onde as candidaturas procuram beneficiar-se das paixões, do encantamento e da devoção - emoções naturais, repita-se, nas disputas democráticas - a imprensa cumpriria o seu papel se procurasse iluminar o que há de factível nos sonhos bons e nas bravatas perversas. Enquanto os candidatos tendem a inflar em si mesmos e nos seus seguidores a capacidade de mudar o mundo, ou, pelo menos, o País, os jornalistas deveriam ocupar-se de alertar o público para as inviabilidades e para os méritos das conclamações eleitoreiras. Se o candidato - tomemos o exemplo de Barack Obama - pode legitimamente embarcar no slogan "Yes, we can", a imprensa deveria levantar a mão, na hora, e perguntar: mas com que dinheiro? Com que legislação? Com que servidores públicos?
Numa eleição como a que se aproxima, podemos experimentar diretamente o valor de uma redação verdadeiramente apartidária. O serviço público que ela pode prestar é, numa palavra, inestimável. A pergunta, então, passa a ser a seguinte: a imprensa brasileira está à altura desse dever institucional? Ela é apartidária? Ou melhor, existem núcleos de fato independentes dentro da vasta instituição da imprensa no Brasil? E esses núcleos conseguem imprimir, inspirar e liderar os padrões de qualidade do debate público, exigindo dos postulantes a cargos eletivos um ordenamento de propostas factível e verificável?
As respostas para isso estão em aberto. Os principais órgãos informativos do Brasil terão de provar, agora, em 2014, que são dignos da função que a democracia lhes reserva. E não será fácil provar. Se você quiser alguns indicadores para saber se a prova está sendo feita (ou não), aí vão eles:
A cobertura do julgamento do mensalão tucano terá de ser tão detalhista e obstinada como foi a do mensalão do PT.
A separação entre as páginas de opinião e as páginas de reportagens factuais terá de ser administrada com um zelo paranoico.
A origem de recursos de cada projeto de cada programa de governo deverá ser verificada no nível do centavo, uma vez por semana (no mínimo).
O espaço (objetivo) e a ênfase (que envolve elementos valorativos) dados a cada candidato majoritário deverão obedecer a critérios de proporcionalidade claros, públicos e verificáveis.
A propósito: qual o plano de cobertura eleitoral de cada veículo jornalístico? Você conhece? Quais as perguntas centrais para cada um? Como você, eleitor, poderá comparar as declarações entre os vários candidatos sobre os mesmos tópicos? Como você poderá verificar de que forma os interesses dos principais doadores se refletem nas propostas de cada candidatura?
O ano de 2014 se abre como um desafio do tamanho do mundo para a imprensa brasileira. Os veículos que se renderem ao comodismo de atuar como panfletos apontados contra os inimigos dos amigos verão a sua credibilidade minguar ainda mais. Os que insistirem em recusar o pluralismo e em contrabandear opinião (e preconceitos) sob o disfarce de informação objetiva perderão terreno e perderão lugar - e isso não no futuro longínquo, mas no ano que vem. Os que acreditam que ainda podem adotar dois pesos e duas medidas sem que ninguém perceba ficarão falando sozinhos. Hoje as pessoas do público sabem tanto quanto o jornalista. Estão vendo tudo. Os reizinhos da imprensa estão nus, ridiculamente nus. A cada dia mais, o que separa o jornalista profissional do cidadão genérico não é mais a quantidade de informação que o primeiro guarda sem que o segundo saiba. O que distingue o jornalista, atualmente, é a capacidade - e o dever - de lançar perguntas a partir de um ponto de vista independente, que não se deixa inibir pela agenda posta pelos partidos. O público vai rechaçar, cada vez mais, os renitentes que procuram, por meio de subterfúgios e campanhas difamatórias, direcionar indevidamente a formação da opinião pública, para entregar vantagens impróprias aos amigos.
O desafio está posto. Está aí, na cara de todos nós. Haverá quem finja que ele não existe. Esperemos que alguns, pelo menos alguns, tenham a lucidez de enfrentá-lo com boa-fé e desprendimento.
Um comentário:
O autor do texto comete o pecado que ele condena.
Diz que a imprensa deve informar imparcialmente o leitor, mas quando usa a expressão "mensalão tucano" induz ao erro.
Eduardo Azeredo, governador de Minas, usou o esquema de desvio de dinheiro público engendrado por Marcos Valério (e por isso, Azeredo deve ser condenado). Mas não houve mensalão, pagamento de mesada mensal aos membros do poder legislativo de Minas. Mais do que a gravidade da apropriação do dinheiro público pelo Executivo federal, a compra do Congresso foi o golpe final do equilíbrio entre os Poderes. Não houve "mensalão" em Minas; houve crime, mas não este.
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