O GLOBO - 23/01
No estado mais rico do país, no interior mais próspero, nas proximidades de uma refinaria da petróleo e em empresas que produzem para grandes redes de supermercado, foi flagrado trabalho degradante em carvoarias. A cena se parece com todas: trabalhadores em situação de risco, indícios de desmatamento de mata nativa e empresas inseridas na cadeia de suprimento do país.
É assim mesmo que funciona na Amazônia, em locais de difícil acesso para a fiscalização das autoridades. O país se escandaliza e pensa que é só lá, em terra ainda sem lei. O que fazer com nossas convicções quando acontece tão perto dos olhos de todos nós? Perto de uma cidade como Bragança Paulista?
“O carvão produzido na região é comprado por grandes redes de supermercados", informou o GLOBO de ontem na primeira página. O repórter Ronaldo D’Ercole, que acompanhou a ação da Polícia Rodoviária Federal, Ministério do Trabalho e Ministério Público, relatou que os trabalhadores não tinham água potável, banheiro, nem local para se alimentar. Não tinham proteção para as mãos, olhos e pulmões contra a fuligem dos fornos. Havia também menores de idade.
São pequenas carvoarias, dirá o setor. Não compramos delas, dirão os supermercados. Mas legal e ilegal estão misturados. Os pequenos fornecem para os maiores, que fornecem para os supermercados nos quais todos compramos. E assim, em um alegre churrasco de domingo, os consumidores podem acabar convalidando crimes trabalhistas e ambientais, sem saber.
Por isso é que autoridades ou organizações que combatem o trabalho análogo à escravidão sempre investigam a cadeia produtiva. É lá que está o nó. Uma parte da empresa é legal, outra não. Há casos em que a empresa assina a carteira, mas não fornece os indispensáveis equipamentos de proteção ou garante condições de trabalho digno. É preciso dizer a um empregador que é sua obrigação proteger mãos, pulmões, olhos do trabalhador dos elementos nocivos à saúde? É necessário avisar que quem trabalha precisa de local limpo para se alimentar? Tem que haver norma mandando fornecer água potável? O Ministério do Trabalho cria regras proibindo o que deveria estar proscrito em todo o território nacional. E o faz porque o óbvio não é respeitado por empresas.
O chefe da Fiscalização para a Erradicação do Trabalho Escravo, Alexandre Lyra, disse, segundo Clarice Spitz, que há o entendimento errado de que só se configura trabalho escravo quando há homens armados impedindo a saída do trabalhador. Disse que, em 20 anos, nunca viu. Outros já viram, mas há formas variadas de manter a pessoa em situação desumana. Na área rural, a estratégia ainda é a do armazém. Produtos vendidos a preços exorbitantes em áreas remotas, ou dívida falsa da compra de ferramentas que o empregador tem que fornecer.
A condenação da sociedade, a atuação de ONGs, as campanhas da OIT, Ministério Público, do Ministério do Trabalho, a lista suja, a pressão sobre grandes empresas têm surtido efeito. O crime de trabalho análogo à escravidão tem diminuído pelo combate sistemático. Desde 1995, foram encontrados nessa condição 46 mil trabalhadores. Em 2013, foram 1.619, o maior número em cinco anos, o que parece indicar aumento do problema. É, na verdade, um aperto maior na fiscalização, que hoje não se limita mais ao setor rural, mas também ao urbano, onde empresas têxteis, que fornecem para grifes famosas, têm sido flagradas.
Só a erradicação é aceitável e esse é o sentido da PEC do Trabalho Escravo que pune com expropriação a empresa que praticar o crime. A bancada ruralista trabalha para desidratar a regulamentação da PEC 57, de 1999. Argumenta que é preciso definir melhor o que é trabalho escravo. “Jornada exaustiva" não poderia estar dentro do conceito, dizem. Donde se conclui que, para eles, explorar as forças do trabalhador além do limite é aceitável. Estranha economia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário