O GLOBO - 14/12
Devíamos nos orgulhar da origem portuguesa. Devíamos aproveitar o fato de sermos a única nação luso-afro-indígena
Por motivos profissionais, me encontro em Lisboa nessas vésperas de Natal. Adoro essa cidade. Não só porque ela é linda, elegante, afetuosa e fala a nossa lingua, como também porque aqui percebo de onde vim.
Como Portugal não participou de nenhuma daquelas guerras arrasadoras e genocidas do século 20, Lisboa permaneceu inteira. Isso é, inteira como sempre foi depois de destruída por um terromoto seguido de maremoto que acabou com dois terços da cidade, em 1755. Ao contrário do que escreveu Lévy Strauss sobre o Brasil exibir uma decadência que não conheceu a civilização, as poucas ruínas de Lisboa parecem intervenções urbanas contemporâneas, como as que produz em outras cidades Gordon Matta-Clark, autodenominado “o anarquiteto”, com manipulação artística de prédios em demolição.
É comovente ver uma juventude lisboeta moderna, a passear pelas velhas vias da cidade vestindo, cantando e dizendo algo à altura do que veste, canta e diz qualquer jovem em Nova York, Londres, Paris ou Barcelona. Assim como não é possível deixar de pensar numa cultura secular, quando se come muito bem em qualquer canto caro ou barato de Lisboa.
No ensaio “Notas para uma definição de cultura”, T.S.Eliot diz que cultura e conhecimento não têm nada a ver, não são a mesma coisa, aquela antecede a este. O conhecimento é uma forma superior das relações do homem com a natureza, enquanto a cultura faz parte e é indispensável à própria existência do homem sobre a terra.
Já cansei de dizer a meus amigos que devíamos nos orgulhar de termos a origem portuguesa que temos. Devíamos aproveitar o fato de sermos a única nação luso-afro-indígena do mundo. Alguma coisa de original temos que extrair dessa mistura, daí sairia nossa potencial contribuição à civilização humana, poderíamos torná-la mais fraterna, solidária e indiferente às diferenças.
Vizinha à Torre de Belém, me espanto com a reprodução de uma nau das descobertas, uma daquelas barcacinhas frágeis em que nossos antepassados portugueses se atiravam ao mar, indo com o vento parar na India e no Japão. Ou nas terras desconhecidas do que seria o Brasil. Uns loucos, esses navegadores; loucos cheios de curiosidade e de esperança no que haveriam de encontrar.
É bom pensar em tudo isso nessa véspera de Natal, a festa do recomeço. O grande poeta alagoano Jorge de Lima, um dos maiores da língua portuguesa, dizia que a diferença cultural entre os catolicismos hispânico e lusitano que nos formaram a todos na América Latina, é que a festa máxima dos espanhóis é a da Paixão, representada pela imagem do Cristo em chagas a sofrer na cruz, ferido de morte por nossos pecados.
Já a festa portuguesa por excelência, a que herdamos deles, é a do Natal, cuja imagem fundadora é a do Menino na manjedoura iluminada, cercado por seus pais, por pastores e reis, com a estrela de Belém ao fundo, a anunciar a chegada de nossa Redenção. É isso o que devíamos ser e representar para o mundo, não importa a religião ou a ausência dela.
Não me apego a nostalgias, tenho saudades de muito pouca coisa, quase todas muito pessoais (como a saudade de meu corpo jovem, por exemplo). O mundo já foi muito pior, o país mais atrasado, nossa vida muito mais difícil. Apesar de tudo, mesmo com tanta miséria e injustiça, com tanto egoísmo e abandono, com os confrontos pelo mundo afora, vamos avançando, tentando prolongar nossa existência com uma certa qualidade, conquistando nossos direitos específicos e universais.
Mas não posso deixar de dizer que já gostei mais de Natal, sobretudo o de minha terra, Alagoas. Na minha infância, Natal era mesmo festa. As pessoas cantavam e dançavam pastoris, reisados, cheganças, todos os festejos populares de origem portuguesa (às vezes, com influência moura). Num certo sentido, talvez fosse até mais animado que no carnaval.
Mesmo já morando no Rio de Janeiro, minha mãe organizava na Rua da Matriz, com jovens filhos e filhas de vizinhos, grupos de pastoril, quase sempre na casa de Valquíria e Barreto Filho, ilustre crítico literário amigo de meu pai. Minha mãe se encantou quando foi convidada por médicos do Instituto Pinel a ensinar o pastoril aos internos da casa e passou a fazê-lo todo ano.
As festas de Natal duravam o mês de dezembro inteiro e só iam terminar no 6 de janeiro, Dia de Reis. Agora, a gente fica sentado na sala, assistindo em silêncio à festa de um só Rei, único, maravilhoso e inbiografável. Por que estamos tão tristes? Precisamos recuperar nossa alegria de viver, nossa herança das famosas “três raças tristes”.
Confesso que não acho graça no Papai Noel que invadiu a festa. Com aquela barriga, sempre acho que se trata de propaganda de cerveja. E acho árvore de Natal um estorvo em casa e na rua. Essa não é a minha festa. Eu gosto mesmo é de presépio e de desejar um bom Natal a com quem cruzo na rua.
Por falar em Natal, paro de escrever hoje e só volto no dia 11 de janeiro. Feliz fim de ano para todo mundo.
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