O Estado de S.Paulo - 14/12
No dia 24 de novembro o papa Francisco entregou à Igreja sua exortação apostólica Evangelii Gaudium - A Alegria do Evangelho. Diversamente de uma encíclica, dirigida de maneira aberta a todos, a exortação apostólica é uma diretriz vigorosa sobre determinado tema dirigida aos membros da própria Igreja.
Nesta sua primeira exortação apostólica Francisco trata do anúncio do Evangelho no mundo atual, tema relacionado estreitamente com a assembleia do Sínodo dos Bispos de outubro de 2012, sobre "a nova evangelização para a transmissão da fé cristã". O papa expõe as intuições e preocupações levantadas naquele Sínodo, fundidas com a sua pessoal percepção e orientação sobre as questões relacionadas ao tema.
A principal missão da Igreja de Cristo é, de fato, anunciar o Evangelho, ou "evangelizar". Ela o faz quer pela pregação explícita e pela celebração dos sacramentos, quer pelo testemunho de vida dos seus membros, quer, ainda, pelas obras que realiza no meio da comunidade humana - nos âmbitos da saúde, da educação, da assistência social e da promoção da justiça e da dignidade humana. "A Igreja existe para evangelizar", já afirmava o papa Paulo VI na exortação apostólica Evangelii Nuntiandi (1975) - sempre recordada quando se trata do assunto.
Se bem que a Igreja nunca tenha deixado de evangelizar ao longo de toda a sua história quase bimilenar, ela não o fez sempre do mesmo modo. O conteúdo é o mesmo, mas o jeito mudou, com novos enfoques e destaques, dependendo das circunstâncias e necessidades. Mais de uma vez a Igreja precisou enfrentar o risco da desmotivação e do cansaço, de perplexidades resultantes de situações momentâneas, ou de crises, que ela teve de enfrentar com ânimo renovado. Hoje não é diferente.
Essa é a questão posta na exortação Evangelii Gaudium. Antes de tudo, Francisco exorta a Igreja a que ela não pode esquecer nem abdicar de sua identidade missionária. O Evangelho, que lhe foi confiado por seu Fundador, é um dom para o mundo todo, que a Igreja não deve reter apenas para si mesma, muito menos esconder para não ser contaminado com as realidades do mundo. A Igreja não existe em função de si mesma, nem se pode fechar sobre si mesma; por sua própria natureza, ela precisa estar em "atitude de saída", em estado de missão.
Por isso Francisco chama os membros da comunidade eclesial a se voltarem para essa identidade missionária. Isso demanda a superação de certa tendência à introversão eclesial e a renovação de convicções e atitudes, "a partir do coração do Evangelho". Há tentações a serem evitadas, como o desânimo, a acomodação à mentalidade individualista, que faz perder a força dinâmica do anúncio do Evangelho; há também a tentação de transformar a religião em praça de consumo ou em fonte de lucro, poder e vanglória.
O "mundanismo", processo sutil de assimilação da Igreja e de sua pregação originária ao ambiente, foi um risco já advertido por São Paulo no início do cristianismo - "não vos conformeis com este mundo!" - e recorrente em toda a história da Igreja. "Não tenham medo de ir contra a corrente", convidou Francisco, com insistência, aos milhões de jovens reunidos na orla de Copacabana em julho. E isso não por uma perfeição já alcançada, mas por se ter uma meta alta para a existência humana e um caminho para alcançá-la, que requerem escolhas lúcidas e corajosas.
O papa exorta todos os membros da comunidade eclesial a fazerem sua parte na evangelização, que não pode ser relegada apenas a poucos e heroicos mensageiros. Há "deveres de casa" que não podem ser repassados simplesmente aos outros. Mas o papa não deixa de dirigir uma palavra especial aos que devem fazer a homilia, a pregação feita dentro da celebração litúrgica. Essa tem um papel inegável na transmissão e no cultivo da fé cristã.
A dimensão social da evangelização deve receber uma atenção renovada, para que o Evangelho alcance todos os âmbitos da vida social e comunitária; sem isso ele seria como o sal ou o fermento que permanecem na prateleira, não produzindo efeito algum. As convicções da fé cristã não dizem respeito apenas à vida privada, mas trazem consigo uma visão própria sobre as realidades do homem e do mundo e têm muito a contribuir em seu benefício. O Evangelho é um bem não apenas para quem crê, mas também para toda a comunidade humana.
A Doutrina Social da Igreja, elaborada ao longo de séculos e apresentada modernamente em várias encíclicas e outros documentos do magistério eclesial, expõe de maneira sistemática o pensamento social cristão e católico sobre temas como a dignidade humana, as relações sociais e políticas, a economia, a justiça social, a paz no mundo e, mais recentemente, sobre as questões ambientais. Nada disso é indiferente ao Evangelho.
Francisco recorda, com renovado frescor, que a atenção especial aos pobres, doentes e desvalidos deriva diretamente da fé em Cristo. Portanto, essa preocupação também é parte integrante da evangelização e precisa ser traduzida não apenas em atitudes assistenciais, mas na ação em favor da justiça e do respeito à dignidade de todos no convívio social.
Porém o papa recorda que o Evangelho não é ideologia, e sim força transformadora da vida. Não se faz a evangelização por decretos nem por decisão em assembleias, mas pela ação de pessoas felizes por terem encontrado a grande luz de sua vida no Evangelho de Cristo e na fé em Deus. Já dissera Bento XVI: "A Igreja não cresce por proselitismo, mas por atração". O Evangelho enche de alegria o coração dos que o acolhem; e eles o transmitem não como um dever pesado, mas como alguém muito feliz por ter coisas boas a comunicar.
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