O ESTADO DE S. PAULO - 05/10
O julgamento da aceitação ou não dos já famosos embargos infringentes no STF trouxe a muitas pessoas inquietação em vista da existência de tão flagrante controvérsia nas decisões judiciais, deixando no ar insegurança na aplicação da justiça.
O juiz penal, ao julgar, enfrenta dois desafios: 1) reconhecer por meio das provas o fato ocorrido, no seu contexto, em todas as circunstâncias objetivas e pessoais; e 2) adequar ao fato a norma cabível, interpretando seus termos, seu sentido e o fim visado, casando-os com a hipótese real em apreço. O magistrado não apenas diz a lei, como se a decisão já se contivesse pronta, acabada no texto legal, mas tem a tarefa, com limites, de estabelecer a norma para o caso concreto.
Coordenei trabalho em quatro volumes (Editora GZ), denominado Jurisprudência em Debate, no qual com dez jovens penalistas realizamos estudo doutrinário de crítica aos julgados contraditórios, para examinar qual a orientação que nos parecia correta: a que afirma A ou a que afirma não A.
Vejamos exemplos. No crime de ameaça, consistente em prometer causar a alguém mal injusto e grave, decisões se dividem em vista do surgimento ou não de temor na vítima: haveria intimidação se o ameaçador se encontra em estado de ira? Ou, para se configurar o crime, o agente precisa estar calmo, em atitude refletida?
Forma-se a seguinte confrontação: de um lado, só se admite o crime de ameaça se provir de pessoa com ânimo calmo e refletido, considerando-se que a ameaça não se configura quando a afirmação é proferida no calor de uma discussão, pois não houve, com seriedade e idoneidade, promessa de mal futuro, já que em estado emocional de exaltação está ausente o propósito refletido de causar temor ou inquietação de ânimo à vítima.
Em sentido diametralmente oposto, decidiu-se que a ameaça feita por encolerizado tem maior energia intimidativa, é mais convincente que a produzida a frio. Na verdade, diz o acórdão, ressalvada a hipótese de mensageiro "mafioso", se a ameaça é produzida a frio, isto é, se o ameaçador se mostra perfeitamente sereno, radicalmente isento de paixões, e aparenta ter completo domínio de seus nervos, então de duas, uma: é mentalmente desequilibrado ou está pilheriando.
Na análise crítica que fiz, ponderei não ser correto que a ameaça proferida em momento de cólera, durante discussão acalorada, não venha a configurar a intenção de atemorizar, pois o medo não surge apenas diante de promessa de mal feita com "ânimo e refletido". A questão está em verificar se a ameaça, dita friamente ou em acesso de raiva, no caso se reveste de seriedade, com força para infundir temor à vítima, atingindo o direito de cada qual de se sentir seguro.
Vejamos agora dois exemplos referentes à responsabilidade penal em acidente automobilístico. Há decisões entendendo bastar ao motorista não ter habilitação para ser considerado imperito e, portanto, defluindo evidente sua culpa. Para outras decisões, todavia, não se deve presumir a imperícia do agente para dirigir visto não ser habilitado, não se lhe podendo, por isso, atribuir culpa em caso de acidente. A meu ver, a falta de habilitação pode, quando muito, constituir indício, mas jamais presunção absoluta de culpa, pois é viável, no caso concreto, não ter sido essa circunstância o fator determinante do evento delituoso, causado, por exemplo, por transeunte que se projetou sobre o veículo.
A derrapagem é outro dado posto em discussão. Para algumas decisões, derrapagem é acontecimento previsível, que só sucede em casos de velocidade incompatível ou imperícia do motorista. Em sentido contrário, para outro acórdão, a derrapagem nem sempre é previsível, pois pode ter sido determinada pelo estado da pista, sem que para ela concorresse com qualquer parcela de culpa do acusado. Comentando a divergência, observei haver rigorismo destituído de base real na decisão que fixa de modo determinante ser a derrapagem sempre previsível, fruto da imperícia ou de imprudência consistente na alta velocidade, pois esta pode ter sido causada efetivamente por invisível mancha de óleo esparramada.
Só à luz do caso concreto será possível saber o que é justo.
Também na seara do crime de quadrilha ou bando há divergências. Segundo certa orientação jusprudencial, para a caracterização do crime de quadrilha ou bando basta uma organização rudimentar, capaz de levara cabo o fim visado, não se exigindo nítida divisão de funções, estatutos, hierarquia ou mesmo contato pessoal dos agentes. Em sentido diametralmente oposto, requer-se que a associação se traduza por dolo de planejamento, divisão de trabalho, organicidade, provado o efetivo funcionamento do bando com caráter permanente.
A permanência e a estabilidade da associação são elementos básicos do crime de quadrilha ou bando. Mas não se confundem com organização estruturada, mediante hierarquia, planejamento e divisão de trabalho. Assim, a meu ver, como já afirmara, basta uma organização rudimentar, em vista da distinção a ser feita entre organização criminosa, estruturada, e associação para cometer crimes.
Como se vê, o Direito é o que a interpretação fundamentada for. O ato de julgar não se reduz a uma atitude passiva diante dos textos legais. A criação judicial do Direito Penal, frisa Ricardo Andreucci, é necessária para ajustar as leis, feitas para a generalidade, ao que emana da realidade de modo multifário.
Em busca de certeza cumpre obedecer aos limites da Constituição e de seus princípios, da lei, dos precedentes e da doutrina. Assim, relevantes são a uniformização da jurisprudência pelo STJ, a formulação de súmulas pelos tribunais superiores e, por fim, o papel crítico e aprofundado da doutrina. Dessa maneira se tenta combinar liberdade de interpretação com segurança jurídica contra abusos do ativismo judicial.
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