O Estado de S.Paulo - 26/19
Dispensa-se qualquer contorcionismo mental para entender por que imagens de confronto entre policiais e manifestantes no Rio de Janeiro, no dia do leilão do Campo de Libra, conviveram na imprensa com imagens de chineses asfixiados pela poluição na cidade de Harbin, região nordeste do país, onde a concentração de partículas no ar atingiu níveis alarmantes. E dispensa-se por inútil tentar entender. Os dois eventos, vistos separadamente, guardam muitas complexidades. Porém, associados, desafiam a nossa lógica.
No Rio, até os cocos da praia serviram de arma de arremesso para os aguerridos do "petróleo é nosso". E a força militar compareceu, com uma truculência que já se faz habitual, para garantir que o martelo do leilão fosse batido. Não poderia periclitar a exploração do megacampo pré-sal na Bacia de Campos. Daí jorraram análises dos favoráveis ao modelo de concessão, dos defensores da partilha, dos que celebraram com Dilma, dos que vaiaram o governo, das loas à autossuficiência petroleira, do ceticismo sobre a destinação social dos royalties.
Só que o vozerio abafou questões cruciais, vindas de um outro ordenamento de ideias: desejamos nos lambuzar do óleo das profundezas por anos e gerações à frente? Queremos entrar para o clube dos dez maiores emissores de CO2 do planeta? Combinamos entupir nossas vias públicas de carros e nossas veias privadas de monóxido de carbono? Financiaremos com royalties o tratamento de pulmões falidos? Temos ainda quanto tempo para acreditar que o progresso e o nosso bem-estar resultam da combustão fóssil?
Sempre haverá um climatólogo estilo "veja, pense bem" a nos dizer que não nos assustemos, afinal, a crise atmosférica de Harbin tem a ver com a aproximação do inverno e o regime dos ventos siberianos - o que pode baixar a temperatura local a 35, 40 graus negativos. Ok, mas a cidade conhecida como a "Pérola no Pescoço do Cisne" virou um cenário fantasmagórico dias atrás, envolta em espessa bruma cinzenta (pela concentração de poluentes no ar), com toda a população usando máscaras, crianças trancadas em casa, aulas suspensas, serviços de emergência semiparalisados, hospitais repletos de pessoas com problemas respiratórios. Cenas que evocavam um holocausto ambiental.
Harbin, 5 milhões de habitantes na área urbana, é uma cidade chinesa famosa por suas universidades e bons institutos de pesquisa. Seu sistema de calefação a carvão, amplamente utilizado, somado à frota de carros, responde hoje por uma parte do grande problema nacional que é a poluição. Parêntese: lembro de uma viagem que fiz à China, nos anos 1990. Em Beijing, quando os faróis passavam do vermelho para o verde, poucos carros engatavam a primeira. O que ainda se via, e ouvia, era o silencioso deslocar das bicicletas, avançando em ondas pelas grandes avenidas. Algo inesquecível. Será que as bicicletas de Beijing eram o testemunho de uma era a ser embalsamada ou já continham o gérmen do futuro?
Quando esse tipo de dúvida se instala na nossa cabeça, vale retomar a obra de Jared Diamond. O professor (guru) de geografia cultural da Universidade da Califórnia, autor de best-sellers como Armas, Germes e Aço e Colapso (lançados no Brasil), continua se aprimorando na ciência das perguntas desestabilizadoras. Estudioso do funcionamento da vesícula e amante dos pássaros, ele acabou se embrenhando em fins de mundo atrás de explicações sobre como povos submeteram outros povos, a partir de vantagens ecossistêmicas. Depois quis entender por que sociedades entram em colapso, enquanto outras florescem. Agora encara outra de suas indagações impertinentes: por que a modernidade mostra tanta dificuldade de reação diante de duas coisas - crise e mudança.
Ultimamente, Diamond vem lidando com uma espécie de categoria civilizatória curiosa, que ele próprio inventou. Chama-se WEIRD, palavra inglesa que significa "esquisito", "estranho", mas que, no caso, funciona como sigla para "western, educated, industrialised, rich and democratic" (ocidental, culto, industrializado, rico e democrático). Ser "weird" é mesmo o que há de melhor a ser conquistado? E não ser "weird"? É sinônimo de fracasso ou de "vida ruim"? Todo o avesso dessa discussão está num livro mais novo de Diamond, The World Until Yesterday, fornecendo pistas para questionar nossa obstinação por recursos energéticos que a rigor nos consumirão. E levarão sociedades a colapsar.
O mais recente relatório do Painel Internacional Sobre Mudança Climática, da ONU, tem a ver com essa obstinação padrão "weird": medições (inclusive remotas) demonstram que, entre 1983 e 2012, o Hemisfério Norte atingiu as mais altas temperaturas dos últimos 1400 anos. Desde a metade do século 19 até hoje, o nível dos oceanos alcançou as maiores elevações num período estudado de dois milênios. A concentração de CO2 no planeta é 40% mais alta desde o início da Revolução Industrial. A temperatura terrestre média deverá subir 2 graus Celsius nos próximos anos, projetando impactos que serão sentidos de forma diferente, em distintas áreas do globo. Assim, apenas para evitar o agravamento daquilo que já é grave, cientistas fortalecem o consenso de que 3/4 das reservas conhecidas de óleo e gás no mundo deveriam continuar exatamente onde estão. Inexploradas.
Mas, por que achamos que estes números não representam risco? Por que as elites tomadoras de decisão insistem em antigos modelos e são incapazes de distinguir o que é interesse de curto e de longo prazo? Por que arremessamos cocos, levamos cacetadas e comemoramos o martelo? Diamond fala da polarização e da intolerância, fenômenos crescentes, como os maiores obstáculos para a formação de uma consciência da sustentabilidade. De certa forma, é como se nós, os "weirds", estivéssemos atrofiando a capacidade humana de nos encarar mutuamente e perguntar: "E aí, o que você pensa disso? Quero te ouvir".
Nenhum comentário:
Postar um comentário