O Estado de S.Paulo - 29/09
Buganvílias multicoloridas na saída do aeroporto de Nairóbi. Foi essa a primeira imagem marcante que tive, ao vivo, do Quênia. Não reconheceria agora sua capital, tantos anos se passaram e tão moderna-ou modernosa-ela ficou. Parecia, nos anos 1980, uma cidade do interior do Brasil de meados do século passado. Por ela passei ligeiro, abreviando meu curso para o que o Quênia e o resto da África têm de melhor: as savanas e sua vida selvagem. Nem sequer peguei em atividade seu mais antigo centro comercial, o Yaya (assim batizado em homenagem ao célebre blues de Lee Dorsey), cuja construção foi um dos primeiros sinais da forte urbanização que a antiga colônia inglesa experimentaria nas décadas seguintes.
Vinte e cinco anos atrás, menos de 30% dos africanos viviam em cidades. Daqui a 12 anos, mais da metade da população do continente será citadina. A África se cosmopoliza rapidamente, não quer ser apenas conhecida por seus parques nacionais e seus safáris, pelas minas de diamantes, por sua limitada agricultura, mas também por outras riquezas e atrações turísticas, como um polo comercial, financeiro e de serviços em sólida expansão.
Empreiteiras chinesas constroem estradas no Congo e Madagáscar. Companhias sul-africanas põem o alô-alô ao alcance de toda a vizinhança. Com a classe média que mais velozmente cresce no Hemisfério Sul, a África tem, hoje, mais assinantes de telefonia móvel que os Estados Unidos e a União Europeia. Nesse ritmo, creem os mais otimistas, só a miséria deixará de prosperar no continente. Por enquanto, isso não passa de uma quimera. Os contrastes ainda saltam à vista: 70% dos africanos moram em favelas, 40% dos quenianos vivem na pobreza absoluta.
Até algum tempo atrás, o Quênia não passava, aos olhos de fora, de um imenso parque nacional, com seus sedutores lodges no meio da bicharada e o Mount Kenya Safari Club que o ator William Holden construiu para o smart set internacional. Suas reservas ainda atraem turistas aos magotes, mas a pergunta que mais fazem a quem acaba de chegar de lá é "você foi ao shopping mall em Nairóbi?".
O aludido shopping é o mesmo Westgate há dias invadido por terroristas do Al-Shabab. Aberto ao público em 2007, de pronto o perceberam como um símbolo conspícuo do novo Quênia, o mais vistoso cartão postal do cosmopolitismo de sua capital, o paraíso da classe média local, a meca dos flâneurs e consumistas estrangeiros, o point favorito da abonada comunidade asiática, e até mesmo de uma fração dos 450 mil somalis residentes no país.
Westgate tornou-se uma espécie de World Trade Center do Quênia, um alvo mais atraente para o jihadismo do que qualquer prédio público ou estação rodoviária justamente por seu valor simbólico, pela fragilidade de seu sistema de segurança e porque seus proprietários são judeus e representam, na visão xenófoba dos mujahedin do Al-Shabab, "o materialismo capitalista ímpio e malsão".
"Nem parece Nairóbi", seus visitantes mais deslumbrados costumam dizer. Confortável e luxuoso, com ar condicionado perfeito, cafés, restaurantes, butiques grifadas e áreas de repouso, refúgio igual os quenianos, especialmente os favelados de Kibera, jamais tiveram. Muitos dos seus visitantes nunca haviam visto um banheiro de perto. É o espaço realmente democrático da cidade, aberto a todas as classes sociais, sem inspeções e triagem na porta, guardas só para evitar acidente triviais, como tropeçar ou cair na escada rolante, por exemplo, como amiúde acontecia nos primeiros tempos do Yaya Mall.
O ataque da Al-Qaeda à Embaixada dos Estados Unidos em Nairóbi, 15 anos atrás, atingiu o plexo dos americanos; a chacina do Al-Shabab no Westgate Mall foi um direto no fígado do governo de Uhuru Kenyatta e um choque no coração dos quenianos ou onde mais eles guardem seu orgulho, suas fantasias de ascensão social e seus medos.
Nas Américas, shopping malls são tidos como recintos caretas, sem charme, assépticos, emblemas do conformismo. Na África, ao contrário, os centros comerciais promovem a sociabilidade, são pontos de aglutinação até de artistas e intelectuais. Limpíssimos, muito bem iluminados, decorados com discutível sofisticação e variada escala de delírios (rios, bulevares, praias, florestas artificiais, como em Las Vegas), oferecendo iguarias de todas as partes do mundo, funcionam como uma antessala do primeiro-mundismo. Sem as grades que segregam as residências dos ricos e mantêm os pobres a distância.
Em Johannesburgo, na África do Sul, todo mundo frequenta o Sandton City Mall, com a mesma assiduidade com que os personagens de Casablanca iam ao Rick's Café Américain. Os zambianos se vestem com esmero de festa quando aos sábados vão ver as modas (e xeretar as 11 lojas de eletrônicos) no Manda Hill Mall de Lusaka, único lugar público do país onde as moças podem desfilar de minissaia e stilettos (em geral dourados) sem o olhar reprovativo dos mais velhos. Na África, shopping mall é sinônimo de libertação.
E dinheiro em caixa. Investir no comércio varejista virou o melhor negócio do continente, mais lucrativo que a exploração de recursos naturais. Centenas de centros comerciais foram inaugurados nas duas últimas décadas. Só uma empresa sul-africana constrói no momento 50 grandes shoppings no Zimbábue, em Moçambique e nas Ilhas Maurício. Mas entrar neles, depois do último atentado em Nairóbi, neles e nos shoppings do mundo inteiro, poderá ficar tão complicado quanto embarcar num aeroporto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário