domingo, setembro 29, 2013

Espionagem - SACHA CALMON

CORREIO BRAZILIENSE - 29/09

Gosto do verbo espiar, mas prefiro o verbo olhar. "O verde no olhar da minha amada." Outro dia li: "A artista levou à Europa um olhar tipicamente brasileiro sobre a vida no morro".

Espionagem vem do verbo espiar. É vero que é velado, oculto. Mas convenhamos que o governo brasileiro, tomado de indignação, exagera nessa questão da espionagem norte-americana (como sempre com o prestimoso auxílio do Reino Unido).

A espionagem política e empresarial é uma senhora velha de séculos. A atividade já ensejou centenas de livros, uns muito picantes, outros relatando espiões famosos e escândalos políticos, além de filmes plenos de glamour, caso da série James Bond.

Todas as nações espiam e são espionadas, menos nós, por total incompetência não apenas para espionar como também para nos defender. Somos uns caipiras em termos de inteligência. Este nosso governo não tem a menor ideia do que seja inteligência e contrainteligência. O resultado não poderia ter sido outro.

Agora vejam a importância histórica de Snowden. Ele alertou o mundo sobre a atuação das superpotências, o que conduzirá a uma regulação das comunicações na rede e, talvez, até a uma espécie de governança compartilhada da internet, em que os usuários devem necessariamente ser representados, contra todos os governos e corporações transnacionais. Esse é o lado positivo.

O subproduto mais valioso foi o desmascaramento da secular hipocrisia anglo-saxônica, agora exposta às claras. A presidente do Brasil, contudo, com o seu lado narcísico efervescendo, faz questão de expressar sua indignação de cara feia. Ora essa, saber se ela é amiga, inimiga ou criadora de problemas para os EUA é pergunta pertinente. Até eu gostaria de saber o que essa senhora realmente tem em mente.

Enquanto isso, a Agência Brasileira de Informação (Abin), com toda a sua grosseria, anda a espionar aqui todo mundo, particulares, autoridades e políticos, como vimos no mensalão. A arapongagem nacional é de todos conhecida. No entanto, parece até que se quer botar o Obama de joelhos. No fundo, a presidente quer tirar partido do episódio, mas o assunto é sério demais para ficar nessas demonstrações públicas de atitude.

Temos necessidade mesmo é de um sistema eficaz de espionagem e contraespionagem, silente e eficiente. No mais, esperar que o presidente americano se desculpe é muita pretensão. Nesses casos, a resposta é diplomática, para encerrar o assunto. Os EUA já nos disseram, sem ironia, que o Brasil não está no foco. É a pura verdade.

Desperdiçar a reunião histórica de Estado entre o Brasil e os EUA, nosso segundo maior parceiro comercial, depois da China, é tolice, embora dela não se esperem grandes decisões. Como investidores, sempre ocuparam o primeiro lugar.

O cancelamento da reunião é um tiro na água. Os EUA valem mil Bolívias. Ainda não engoli sacrificar de público um chanceler, humilhando-o, por causa de um país que só nos cria problemas, toma na marra nossas refinarias, aumenta o preço do gás a seu bel-prazer, não coíbe o roubo de carros brasileiros, inspeciona nossos aviões oficiais despudoradamente e permite o tráfico de entorpecentes. Quem está a merecer respostas firmes é esse país andino, inimigo da democracia, useiro e vezeiro em tirar vantagens - como se não bastasse a Argentina - da nossa leniência por razões ideológicas.

Agora se superdimensionam os e-mails da senhora presidente, uma gauchada. Sua firme exigência de "explicações" é fito puramente eleitoreiro.

"O patriotismo é o último refúgio dos canalhas", dizia Nelson Rodrigues, sem com isso atribuir à nossa presidente apelido tão depreciativo. Estou dizendo apenas que pega bem defender intransigentemente a pátria. Rende votos. A oposição é que não se opõe. Não navega no episódio por falta de tino político. De outro lado, é preciso puxar as orelhas de nossa defesa cibernética, incipiente e imatura, ou continuaremos a ser inspecionados, entre risos e ironias.

A reunião do G20 já terminou prejudicada pela questão síria. Agora tínhamos uma chance bilateral de nos acertarmos com um país economicamente vital aos interesses nacionais. Perder a chance e bater o pé? Além de infantil, o gesto não condiz com o encargo de presidir bem o Brasil. Condiz com recuperar a popularidade.

O que sobra desse episódio não é definitivamente um rasgão na soberania nacional, mas a indicação indubitável da ineficiência do governo e do Estado no Brasil. Que tamanha falha nos leve a uma crise artificial com os EUA, cá para nós, vai além do imaginável, apesar dos maus conselheiros que infestam o palácio do governo em Brasília, ostentando o esquerdismo primário que assola o país e alguns outros do continente sul-americano. De todo modo, somente o Brasil tem algo a perder. A nossa presidente se dá muita importância. Nós preferimos dar importância aos interesses da nação, mais sérios e permanentes.

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