O GLOBO - 16/05
Se a série fosse um filme e eu estivesse escrevendo uma crítica, daria um Bonequinho aplaudindo sentado
Frank Underwood, líder do governo no Congresso, é um homem poderoso. Ajudou a eleger o presidente dos Estados Unidos e esperava ser, em troca, o próximo Secretário de Estado. Pouco antes da posse, porém, foi despachado sumariamente pela futura chefe de gabinete: o presidente eleito estava ocupado demais para dar-lhe a má notícia em pessoa. Grave erro! Naquele momento, Underwood decidiu dedicar toda a sua energia a sabotar a administração.
Frank Underwood é Kevin Spacey, protagonista da série “House of cards”. É um personagem shakespeariano na ambição, na falta de escrúpulos e na capacidade de manipular pessoas. O roteiro não esconde o jogo. Assim que o conhecemos, ele estrangula o cachorro do vizinho, que foi atropelado; antes do fim do primeiro episódio, tantas terá feito que se provará digno do congresso brasileiro. Apesar disso, torcemos por ele. Mérito de Kevin Spacey, que é um ator extraordinário, e da trama, emprestada de uma série inglesa que, com o mesmo nome, fez sucesso há coisa de vinte anos. Para quem tiver curiosidade em conferir: basta procurar por “House of cards + UK” no YouTube. São quatro episódios e todos estão lá.
A nova “House of cards” é uma série original da Netflix, que até outro dia era apenas locadora. Ela foi lançada de forma curiosa: em vez de apresentar um episódio por semana, a produtora disponibilizou logo toda a primeira temporada, composta de 13 episódios. Com isso, confundiu a imprensa especializada dos Estados Unidos, que até agora não sabe muito bem como reagir a uma série em bloco. Como escrever sobre episódios que ninguém sabe quando serão vistos? Como comentar o que acontece ao longo dos vários episódios sem estragar a surpresa de quem ainda não os assistiu?
O resultado é que a forma de lançamento de “House of cards” mereceu tanto espaço nos jornais e nas revistas quanto o seu conteúdo. Ela não representa propriamente uma nova forma de ver televisão, já que assistir a temporadas inteiras de uma vez é hábito consagrado por espectadores do mundo inteiro. Mas ela talvez represente uma nova forma de conversar sobre televisão: afinal, quando a turma da maratona chega às coleções completas das séries tradicionais em DVD, cada episódio já foi devidamente destrinchado e analisado a seu tempo. O que fazer, porém, com um monte de episódios sem tempo?
Nós, brasileiros, que volta e meia recebemos seriados muito depois do lançamento, já estamos mais acostumados a lidar com uma profusão de episódios. Ainda assim, a título de comparação, o que faríamos se todos os capítulos de uma novela inédita ficassem disponíveis simultaneamente? Por onde começaríamos a conversa?
Há quem ache que a estratégia da Netflix foi equivocada. Lançando toda a série de uma vez, ela teria perdido a onda que põe as séries tradicionais em evidência na imprensa e nas redes sociais, semana após semana, e, em tese, ajuda a consolidar a audiência. Não tenho tanta certeza disso. Acho que as séries semanais precisam da divulgação para garantir a audiência de um episódio ao outro; já uma que chega em bloco só depende de si mesma.
Ao apresentar os 13 episódios de “House of cards” por atacado, a Netflix ganhou em dramaturgia e em agilidade. Não precisou de flashbacks nem de resuminhos dos capítulos anteriores, uma vez que tudo estava bem fresco na cabeça de quem assistiu. Como espectadora, só tenho elogios para o sistema: não tenho paciência para assistir a séries aos pedaços. Prefiro assim, como se estivesse assistindo a um filme muuuuuito comprido, com um breve intervalo a cada hora.
Frank Underwood é casado com Claire, uma loura gelada e calculista interpretada por Robin Wright, que me pareceu vagamente familiar. Claro: ela foi a princesa Buttercup em “A princesa prometida”, um dos meus filmes favoritos. A diferença é que no filme ela era péssima, e na série está esplêndida. Kate Mara, que faz a jornalista Zoe Barnes, também está ótima (só não entendi por que mora naquele muquifo: não é uma moça de sucesso?). O elenco é um dos pontos fortes de “House of cards”; a produção é outro. Se a série fosse um filme e eu estivesse escrevendo uma crítica, daria um Bonequinho aplaudindo sentado.
(Se você ainda não assistiu e não gosta de spoilers, pare a leitura aqui: a gente se encontra de novo na quinta que vem.)
Apesar de ter visto os 13 episódios com prazer, impliquei com dois pontos do roteiro. Frank Underwood é bem articulado demais para que a bobagem que diz na entrevista com a CNN seja plausível; ele também não precisaria matar Peter Russo. O assassinato foi uma solução fácil demais para um vilão tão inteligente e sofisticado; Underwood não precisaria dar cabo de ninguém com as próprias mãos para que soubéssemos como é mau. O fato de que nada o detém já tinha ficado bastante claro. Sublinhá-lo de forma tão óbvia é subestimar o espectador. Se eu estivesse acompanhando “House of cards” em capítulos semanais, teria desistido aí. Felizmente os dois últimos episódios crescem quando Frank encontra no milionário Raymond Tusk (Gerald McRaney) um oponente à sua altura. Que venha a segunda temporada!
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