Um dia desses, tinha um carro parado em fila dupla na Avenida Ataulfo de Paiva. Um guarda se aproxima e pede cerimoniosamente que o motorista não demore muito. Ele diz que está esperando a filha, que vai sair assim que ela chegar.
Dias depois, uma senhora está tentando atravessar a Jardim Botânico com seu carro sobre duas faixas amarelas. O trânsito esperando nos dois sentidos. Um policial gentilmente faz sinal para a senhora avançar. Ela agradece e segue em frente.
Nas duas situações, os motoristas põem seus interesses acima do coletivo, como se dele não participassem e estão dispostos a negociar com os demais motoristas e os guardas, que por sua vez demonstram tolerância.
Outro dia, vindo do exterior, eu ia declarar um iPad. Entrei no corredor de "bens a declarar" e de longe um segurança gesticulou que eu estava no corredor errado. Gesticulei de volta que queria declarar, mas ele insistia que eu mudasse de corredor. Tudo bem, eu fui para a fila de "nada a declarar", em que não havia um fiscal da Receita e o segurança, impaciente, fez sinal para que eu saísse da alfândega.
Na próxima vez que chegar, vou declarar esse iPad. Quem sabe o segurança não está lá. "Bobagem", me disse um amigo. "Mesmo se você declarar, não adianta." Ele chegou com um iPad já declarado e não houve jeito de o fiscal aceitar o Darf - não era prova de que ele declarou.
A maioria dos viajantes faz um cálculo. Declaro e pago o imposto ou não declaro e corro o risco de ser pego no flagra? Os que vão pela segunda via, contam com a esperança de o fiscal não examinar a bagagem e podem negociar com ele o que levou daqui ou comprou lá fora e o preço das mercadorias. Portanto, para ele, o valor probabilístico do imposto é menor do que o do viajante que declara.
Essa tolerância e esse espírito negociador estão no nosso DNA.
A tolerância mostra uma sociedade que se adapta às circunstâncias, com jogo de cintura para resolver os conflitos. Em geral as regras imitam os costumes e esses vêm da negociação direta entre as pessoas.
A tolerância também evita a radicalização. A convivência em sociedade traz conflitos devido a diferenças de interesses, culturas e preconceitos. Fico pensando nos países com religiões e partidos políticos radicais e o sofrimento que a intolerância traz. Entre nós, etnias, religiões e vizinhos de fronteira convivem em relativa paz. Com jeitinho, estamos sempre dispostos a negociar e a ceder.
Também somos tolerantes com a lei. Nunca sabemos muito bem até onde ela será cumprida e até onde as autoridades serão exigentes com ela. Essa dúvida é uma ameaça, que faz as pessoas buscarem obstinadamente seus interesses sem muita preocupação com o coletivo.
Dedicamos tempo e esforço decidindo se cumprimos a lei, se devemos negociá-la com as autoridades e nos defendendo dos destemidos que preferem não segui-la.
O orçamento público é a lei que estabelece o uso dos tributos arrecadados dos cidadãos. Além do orçamento, o governo tem poder discricionário para oferecer renúncias fiscais e usar empresas e bancos estatais para fazer políticas setoriais e controlar preços. Onde passa um boi passa uma boiada. Aberto o balcão, instala-se uma barganha por nacos do subsídio fiscal.
Quando o governo faz concessões para atender carências setoriais, todos têm o direito de pedir seu pedaço de bolo. Ao favorecer um setor, o governo está desfavorecendo outro, e o sentido de justiça passa a ser questionado. Esse é o momento em que a legitimidade do Estado é arguida.
Ao usar o adiamento de reajustes de serviços públicos e a desoneração tributária para controlar a inflação, o governo está mexendo com as finanças dos prestadores de serviços e as condições de concorrência do mercado. Isso paralisa as empresas e adia os investimentos.
As perdas com a inflação levam a conflitos por reposições, ainda mais em um contexto de livre arbítrio das autoridades. Como defesa, as empresas e sindicatos tentam se antecipar ao aumento da inflação, gerando uma profecia autorrealizada.
O que têm a ver os gentis policiais com a política econômica? Ambos são partes de um enredo sobre a tolerância com as regras e as leis. Essa sensação de que cidadãos e empresas podem negociar com o policial, o fiscal, o burocrata e o político conduz à arbitrariedade e à corrupção.
Dias depois, uma senhora está tentando atravessar a Jardim Botânico com seu carro sobre duas faixas amarelas. O trânsito esperando nos dois sentidos. Um policial gentilmente faz sinal para a senhora avançar. Ela agradece e segue em frente.
Nas duas situações, os motoristas põem seus interesses acima do coletivo, como se dele não participassem e estão dispostos a negociar com os demais motoristas e os guardas, que por sua vez demonstram tolerância.
Outro dia, vindo do exterior, eu ia declarar um iPad. Entrei no corredor de "bens a declarar" e de longe um segurança gesticulou que eu estava no corredor errado. Gesticulei de volta que queria declarar, mas ele insistia que eu mudasse de corredor. Tudo bem, eu fui para a fila de "nada a declarar", em que não havia um fiscal da Receita e o segurança, impaciente, fez sinal para que eu saísse da alfândega.
Na próxima vez que chegar, vou declarar esse iPad. Quem sabe o segurança não está lá. "Bobagem", me disse um amigo. "Mesmo se você declarar, não adianta." Ele chegou com um iPad já declarado e não houve jeito de o fiscal aceitar o Darf - não era prova de que ele declarou.
A maioria dos viajantes faz um cálculo. Declaro e pago o imposto ou não declaro e corro o risco de ser pego no flagra? Os que vão pela segunda via, contam com a esperança de o fiscal não examinar a bagagem e podem negociar com ele o que levou daqui ou comprou lá fora e o preço das mercadorias. Portanto, para ele, o valor probabilístico do imposto é menor do que o do viajante que declara.
Essa tolerância e esse espírito negociador estão no nosso DNA.
A tolerância mostra uma sociedade que se adapta às circunstâncias, com jogo de cintura para resolver os conflitos. Em geral as regras imitam os costumes e esses vêm da negociação direta entre as pessoas.
A tolerância também evita a radicalização. A convivência em sociedade traz conflitos devido a diferenças de interesses, culturas e preconceitos. Fico pensando nos países com religiões e partidos políticos radicais e o sofrimento que a intolerância traz. Entre nós, etnias, religiões e vizinhos de fronteira convivem em relativa paz. Com jeitinho, estamos sempre dispostos a negociar e a ceder.
Também somos tolerantes com a lei. Nunca sabemos muito bem até onde ela será cumprida e até onde as autoridades serão exigentes com ela. Essa dúvida é uma ameaça, que faz as pessoas buscarem obstinadamente seus interesses sem muita preocupação com o coletivo.
Dedicamos tempo e esforço decidindo se cumprimos a lei, se devemos negociá-la com as autoridades e nos defendendo dos destemidos que preferem não segui-la.
O orçamento público é a lei que estabelece o uso dos tributos arrecadados dos cidadãos. Além do orçamento, o governo tem poder discricionário para oferecer renúncias fiscais e usar empresas e bancos estatais para fazer políticas setoriais e controlar preços. Onde passa um boi passa uma boiada. Aberto o balcão, instala-se uma barganha por nacos do subsídio fiscal.
Quando o governo faz concessões para atender carências setoriais, todos têm o direito de pedir seu pedaço de bolo. Ao favorecer um setor, o governo está desfavorecendo outro, e o sentido de justiça passa a ser questionado. Esse é o momento em que a legitimidade do Estado é arguida.
Ao usar o adiamento de reajustes de serviços públicos e a desoneração tributária para controlar a inflação, o governo está mexendo com as finanças dos prestadores de serviços e as condições de concorrência do mercado. Isso paralisa as empresas e adia os investimentos.
As perdas com a inflação levam a conflitos por reposições, ainda mais em um contexto de livre arbítrio das autoridades. Como defesa, as empresas e sindicatos tentam se antecipar ao aumento da inflação, gerando uma profecia autorrealizada.
O que têm a ver os gentis policiais com a política econômica? Ambos são partes de um enredo sobre a tolerância com as regras e as leis. Essa sensação de que cidadãos e empresas podem negociar com o policial, o fiscal, o burocrata e o político conduz à arbitrariedade e à corrupção.
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