O ESTADÃO - 15/04
Em preocupante processo de alta, a inflação conseguiu a proeza de cair na boca do povo - literalmente. Da mesa dos brasileiros, da comida por eles ingerida, surgiram algumas das pressões mais acentuadas sobre a inflação, que, em março, talvez para espanto de algumas autoridades, acabou estourando o limite de tolerância de uma meta inflacionária já tolerante demais para os padrões internacionais.
Quem imaginaria que a prosaica farinha de mandioca, indispensável na mesa de milhões de compatriotas e em pratos como farofa, pirão e bolos, pudesse causar danos à credibilidade da política econômica do governo Dilma? E quem imaginaria que, com a farinha, formando essa espécie de frente alimentar-inflacionária, estivessem o tomate, a batatinha, a cebola, o alho, entre outros vegetais tão corriqueiros na nossa alimentação? É espantosa a alta de mais de 150% da farinha de mandioca, de mais de 120% do tomate e de quase 100% da batata inglesa em 12 meses constatada pelo IBGE, responsável pelo cálculo do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, o IPCA, que baliza a política de meta inflacionária. Alguns jornais chegaram a publicar a intrigante informação de que já há contrabando de tomate - vindo da Argentina, mas passando, é claro, pelo Paraguai.
A galhofa com que boa parte da população recebeu esse tipo de informação - e da qual o uso de um valioso colar de tomates pela apresentadora Ana Maria Braga em seu programa matutino de televisão é o exemplo mais notável - reflete seu bom humor e sua despreocupação. Mas, apesar de seu caráter lúdico, esse tipo de reação talvez sintetize o aspecto mais pernicioso da atual alta inflacionária, que é sua tácita aceitação pelos brasileiros. É como se, apesar de tudo, as coisas estivessem bem.
Não estão - e é disso que precisamos nos dar conta. A inflação acumulada nos 12 meses encerrados em março ficou em 6,59%, acima do teto da banda da política de meta inflacionária. É muito, e as projeções de que nos próximos meses voltará a se confinar nos limites da banda não chegam a ser animadoras. Mais uma vez, o resultado do ano ficará bastante acima do centro da meta. É o que tem acontecido com frequência preocupante há bastante tempo.
Desde 2003, quando o PT chegou ao poder, raramente a inflação atingiu o centro da meta definida pelo Conselho Monetário Nacional ou ficou abaixo dela. Desde 2010, tem ficado sistematicamente acima, embora dentro da faixa de tolerância. Observe-se, complementarmente, que a manutenção do centro da meta em 4,5% desde 2005 - acima da inflação média de 3% observada em outros países em desenvolvimento, com poucas exceções - deixa claro que o governo considera esse o nível adequado, desde que, obviamente, seja computada a margem de tolerância de 2 pontos porcentuais.
É como se, estimulados pelo comportamento tolerante do governo, estivéssemos nos acostumando às remarcações. Embora fatores sazonais e dificuldades de infraestrutura expliquem parte dos aumentos dos últimos meses, outra parte se deve à aceitação dessas altas como normais por uma parcela dos consumidores. Há o risco de a disseminação desse comportamento realimentar e acelerar as altas.
O governo Dilma pouco tem ajudado no fortalecimento das resistências à inflação. Na verdade, por algumas declarações desastrosas, como as feitas pela presidente da República durante sua viagem a Durban, na África do Sul - quando ela sugeriu que o crescimento não poderia ser prejudicado por medidas anti-inflacionárias, como se houvesse necessariamente um conflito entre crescimento e estabilidade -, o governo enfraquece as ações voltadas a conter a alta média dos preços.
Nesse aspecto, não se pode culpar o governo do PT genericamente. Ao longo de seus dois mandatos, o ex-presidente Lula teve a sabedoria de assegurar ao Banco Central a autonomia operacional para cumprir seu papel e para executar a política de metas inflacionárias.
Nas últimas semanas, felizmente, a presidente, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, e outras autoridades têm evitado fazer comentários sobre medidas de combate à inflação, na tentativa de reconhecer que a autoridade a quem cabe tratar do assunto é o presidente do Banco Central, Alexandre Tombini.
Na sexta-feira, por exemplo, quando lhe perguntaram se, ao dizer que o governo não hesitará em tomar medidas impopulares para conter a inflação, estava antecipando a decisão do Comitê de Política Monetária (Copom) a respeito dos juros básicos, o ministro da Fazenda disse o que dele se espera: não fala sobre alta de juros nem antecipa decisões que afetem o comportamento do mercado financeiro.
Tendo sua autoridade e seu papel colocados em questão por declarações infelizes de outros membros do governo, nas últimas semanas Tombini, de sua parte, tem-se dedicado, com razoável êxito, à tarefa de recompor a imagem da instituição que dirige e de reafirmar seu compromisso com a política de metas.
Numa reunião de presidentes de bancos centrais do continente realizada no Rio de Janeiro, Tombini foi claro: "Não há nem haverá tolerância com a inflação". Assegurou, em seguida, que o Banco Central está acompanhando com atenção a evolução de todos os indicadores "e, obviamente, no futuro, vamos tomar decisões sobre o melhor curso para a política monetária".
O futuro está logo aí. O Copom reúne-se a partir de amanhã para decidir o nível da taxa básica de juros que vigorará até o fim de maio. E decidirá num momento em que a inflação alta já afeta as vendas do comércio e a atividade econômica, como constatou o próprio Banco Central, continua a patinar.
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