O Estado de S.Paulo - 21/04
Se um dia se escrever a história do "Baixo Augusta", será indispensável registrar também a pré-história desse fervedouro da noite paulistana - e, nela, abrir vasto capítulo para o inesquecível pioneiro que foi, ao longo dos anos 80, o Spazio Pirandello, no 311 da Rua Augusta. Boa parte está contada no livro Spazio Pirandello - Assim era, se lhe parece, de um dos ex-donos da casa, Wladimir Soares, mas certamente há muito mais o que acrescentar.
De minha parte, a primeira de fartas lembranças fortes é a da noite de janeiro de 1980 em que ali estive, com uns colegas, para beber e chorar mágoas. Motivo para conjugar os dois verbos não faltava. Chegara ao fim uma aventura que por seis meses nos apaixonara e consumira: o Jornal da República, miragem em torno da qual Mino Carta havia reunido marujos de alto coturno - Claudio Abramo, Clóvis Rossi, Ricardo Kotscho, Nirlando Beirão, Roberto Pompeu de Toledo, Paulo Markun, tantos mais - e que, mesmo com tripulação de primeira, naufragou.
Foi essa ressaca que levamos naquela noite ao Pirandello, aberto dias antes por Wladimir e o ator Antonio Maschio na porção mais fuleira da Augusta, num sobrado onde, dizia-se, o jovem Oswald de Andrade afiou os dentes para a Antropofagia. À guisa de engov para almas escalavradas, os anfitriões ofereceram aos sem-jornal uma taça de champanhe - delicadeza e hospitalidade que seriam distintivos do Pirandello nos 10 anos em que esteve sob seu comando.
Havia outros, como a irreverência e a criatividade, especialmente saudáveis num momento em que se vislumbrava o fim da ditadura. Que Brasil aquele! Com a anistia, voltavam os exilados, e um deles, Fernando Gabeira, desafi(n)ava a rigidez dos companheiros ao lembrar, não só com sua tanga de crochê, que fazer revolução é mais do que depor uns generais. A aids, de que se começaria a ouvir falar em 1983, ainda não pusera freio na liberação sexual - da qual o Pirandello era reduto escancarado, quando a vizinha Rua Frei Caneca não era ainda rima para gay.
Impossível esquecer cenas como a que presenciei num fim de noite, quando, o serviço já encerrado, um companheiro de mesa pediu ao garçom mais uma vodca. Sem lhe dar tempo de depositar o copo sobre a mesa, ele avançou no ar uma língua ávida e saburrosa - e, com impassibilidade vacum, olhos semicerrados, se pôs a lamber meticulosamente a mão do garçom, o qual, excedendo-se no profissionalismo, a manteve estendida, trêmula mas não muito, o bastante para que se pudesse ouvir um nervoso chacoalhar de gelo no cristal do copo.
Num tempo de "bares ideológicos" (o Pauliceia 22 era ninho do Partidão, e o Bar da Terra, de trotskistas), aquele era ecumênico. No mesmo lugar onde se gestou a Campanha das Diretas, podia-se, na Sexta-feira Santa, tomar sopa de hóstia (não-consagrada). Chegou ali, antes que em muita redação, a notícia de que Tancredo não tomaria posse no dia seguinte. Era uma quinta-feira e eu estava lá, com Sonia Goldfeder e Flaminio Fantini, ressarcindo-nos de mais um pedregoso fechamento na IstoÉ.
Fomos nós que, não de Brasília, onde rolava o drama, mas daquele bar, comunicamos a novidade ao editor da revista. Em seguida, encharcados de excitação cívico-etílica, saímos pela noite, ansiosos por saber como a notícia batera em cada bar ideológico. O que não nos impediu de às 9 da manhã estar na redação, incorporados ao mutirão da reportagem sobre a não-posse de Tancredo. Assim prosseguiríamos por semanas, durante as quais boletins triunfalistas davam conta de crescentes melhoras no estado de saúde do presidente eleito. A pátria cruzara os dedos com tanta fé que alguém - no burburinho do Pirandello, exatamente - chegou a afirmar: só um milagre poderá matá-lo!
Nas velhas paredes do bar, em 1980, Vania Toledo expôs fotos de homens nus, alguns deles habitués da casa. Lembro-me do ar blasé com que o pessoal fingia ignorar os pingolins ao vento - até que chegassem três senhoras finas, com aqueles cabelos azulados de tia-avó, e, desinibidamente, se pusessem a admirar a anatomia da rapaziada.
Só mesmo no Pirandello.
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