O GLOBO - 21/04
Os atuais momentos íntimos poderão não ser mais tão íntimos. Nada de gravador debaixo da cama, primitivo e arriscado
Essa estupidez inqualificável perpetrada em Boston aviva o receio de um futuro de insegurança, desconfiança e medo para toda a Humanidade. Grande parte dela já enfrenta isso, mas todos podemos esperar um futuro bem diferente do que os que cresceram no século passado imaginavam. Acreditávamos possível uma vida privada, sem partilhar com ninguém nosso comportamento pessoal, práticas, idiossincrasias e mesmo esquisitices que não fossem da conta alheia. Encarávamos como um pesadelo distante e evitável o mundo descrito por George Orwell em1984, com sua omnipresente teletela sempre ligada e a vida dos governados escrutinada em todos os detalhes.
Hoje a tecnologia prevista por Orwell parece saída das velhas séries de Flash Gordon e a aspiração a uma vida privada, ao menos parcialmente livre do controle do Estado e de grandes organizações, não passa agora — e no futuro muito mais — de uma utopia ou lembrança nostálgica. Estamos só começando, mas a tecnologia marcha aceleradamente e as mudanças chegam sem aviso, para só as percebermos quando se torna claro que vieram para ficar. Muitos de nós entontecemos com essa velocidade, gostaríamos que houvesse mais tempo para assimilar as novidades, cansamos de tanto aprender e desaprender sem cessar. Os recalcitrantes se escondem delas, fazem tudo para ignorá-las e mesmo hostilizá-las, mas sabemos que não adianta. Por exemplo, se um vírus hipotético afetasse repentinamente todos os computadores de um país qualquer, inclusive o Brasil, o caos seria absoluto. Não teríamos comunicações, água, energia elétrica, aviões voando, bancos e comércio funcionando, hospitais, nada mesmo. O vírus resultaria, nesse sentido, muito mais eficaz que um bombardeio pesado. Os programas de sabotagem eletrônica são importante arma de guerra, porque não há como escapar da malha informática.
O atentado de Boston aumentará o empenho não só do governo americano, mas de todos os outros, em reforçar e aprimorar mecanismos de segurança. Isso está longe, é claro, de restringir-se a revistas em aeroportos, episódicas varreduras em busca de explosivos, contratação de pessoal especializado e assim por diante. O mais importante é o acompanhamento da vida de cada um, porque, nestes tempos loucos, todos são suspeitos. Londres, por exemplo, está cada vez mais coberta de câmeras de segurança e a circulação de um indivíduo talvez já possa, ou em breve poderá, ser acompanhada o dia inteiro. Por onde quer que ele passe ou aonde vá, lá estará a câmera de olho.
Penso em filmes policiais de antigamente, com a cena da saída do suspeito em seu carro e o detetive pegando um táxi e dando a ordem de “siga aquele carro” ao motorista. A ordem agora é diferente, é “monitore esse celular”. A depender do caso, o sujeito pode ter sua vida completamente espionada, desde os locais por que circula às conversas de que participa — e isso inclui os eles e elas cujos cônjuges desconfiem de prevaricação. Aliás, grampear telefone, celular ou não, é coisa do passado. Vocês já devem ter lido que cada voz humana é única, é como as impressões digitais, não há duas idênticas. Em decorrência, mesmo que um ouvido animal não distinga entre vozes muito parecidas, há aparelhos que distinguem e, se lhes fornecem essa assinatura vocal, ela sempre será identificada. A novidade é que o “grampeado” não tem como fugir. Quando ele começa a falar no telefone, seja celular, doméstico ou orelhão, em qualquer lugar onde esteja, uma central especializada compara a voz com as assinaturas em seu poder. Se reconhece a do freguês, grava a conversa. Fulano pode disfarçar a voz e dizer que é Sicrano à vontade, mas o banco de dados não se engana. E, se as chamadas forem cifradas, o governo certamente alegará razões de Estado para exigir dos autores a chave da cifra.
Os atuais momentos íntimos poderão não ser mais tão íntimos. Nada de gravador debaixo da cama, primitivo e arriscado. O amanto ou amanta (eu faço que esqueço, mas não esqueço as novas normas gramaticais da República) poderá até engolir um minúsculo gravador de circuito integrado, com microfone configurado para suprimir frequências sonoras inoportunas, como as de borborigmos e assemelhados, mas de resto capaz de gravar uma bela trilha sonora do embate amoroso, desde os jogos preliminares à hora de vestir a roupa. Também mentir ficará bem difícil, porque os novos detectores de mentiras não mais se fiam numa combinação complexa e enganosa de alterações cardíacas, respiratórias ou nervosas, mas em sensores que medem mudanças inconscientes na voz e na emissão da fala — dizem que estão ficando infalíveis.
A tendência comum, talvez normal, é o cidadão aceitar sua perda de privacidade, em troca da segurança individual ou da coletividade, até porque não costumam dar-lhe escolha e o medo é uma força muito grande, mais difícil de vencer que outras emoções. E é reacendido não somente por fatos da magnitude do que aconteceu em Boston e suas previsíveis consequências, como pelo que a gente encontra, por exemplo, na internet. Para citar apenas um caso, lembro os muitos sites que mencionam impressoras 3D, as quais tornam possível que se compre um objeto na rede e a entrega seja feita por um aplicativo que instrui a impressora do comprador a “imprimir”, ou seja, reproduzir aquele objeto na casa do comprador, sem necessidade de entregador. As impressoras e os programas já estão em funcionamento, aprimorados diariamente. Não é fantástico? É, sim, pelo menos até vocês fuçarem outros sites e descobrirem empresas desenvolvendo programas, materiais e impressoras 3D para oferecer armas de combate. Qualquer um, do bandido ao psicopata, poderá comprar e “imprimir” quantas quiser, sem numeração ou registro. Dá medo disso, dá medo daquilo — e a gente fica sem saber o que pensar.
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