O ESTADO DE S. PAULO - 01/04
Quando abri a mochila no começo do ano letivo e meu pai viu o título do livro da disciplina que não existia no seu tempo, sacudiu a cabeça, pesaroso. Sabia que Moral e Cívica era um artifício imoral da ditadura militar que desprezava a civilidade. Se, na minha infância, a noção de civismo foi associada à cor verde-oliva, na semana passada a expressão ganhou para mim um polimento como o oferecido pelos melhores engraxates da Rua São José, no centro carioca.
Uma mulher de 82 anos, Edie Windsor, viúva de outra mulher, derreteu o coração de uma boa parte do país, pedindo à Suprema Corte que não prolongasse a exclusão social que ela enfrentou durante 40 anos com sua companheira Thea, morta em 2007.
Uma juíza franzina de 80 anos, sobrevivente de duas batalhas contra o câncer, cunhou com seu característico senso de humor oneologismo "casamento desnatado". A juíza Ruth Bader Ginsburg expôs ao ridículo o arrazoado do advogado que defendia a perpetuação do sofrimento de gente como Edie, perguntando porque ele rebaixava a instituição do casamento tentando impor duas castas: a da união integral, disponível para héteros e um casamento diluído para gays. Milhões comemoraram o gol de placa de Ruth, cuja voz trêmula nos argumentos gravados foi ouvida em escala viral.
Quando o público passa dias na chuva e no frio da capital, sem desordem, esperando conseguir uma das poucas vagas disponíveis para espectadores nas sessões da Suprema Corte, a memória de uniformes verde-oliva se torna ainda mais distante.
O casamento entre pessoas do mesmo sexo, como o Gênio que escapou da lâmpada, não será mais aprisionado na garrafa da contracultura. A cara do movimento é Edie. Ou um universitário da Califórnia, um dos 40 mil filhos de casais homossexuais que cresceu sem compreender a pecha de ilegitimidade que o governo federal lhe impingiu com o lamentável Ato de Defesa do Casamento. O ato conhecido pela abreviação Doma que Bill Clinton assinou sozinho, numa madrugada em campanha de reeleição, em 1996, está em julgamento na Suprema Corte. O cálculo eleitoral do ex-presidente que ajudou a reeleger, em novembro passado, o primeiro presidente a defender o casamento gay, lhe custou amizades e parte da reputação. Clinton tem feito o possível para se penitenciar, num reconhecimento extraordinário de que seu oportunismo pode ter atropelado a Constituição.
Mas a discriminação, é bom lembrar, não afeta apenas minorias, sejam elas raciais ou sexuais. A mulher que quer se tornar a primeira prefeita lésbica de Nova York, a mulher cujo casamento com outra mulher foi um dos acontecimentos sociais do ano em 2012, fez outro cálculo eleitoral para discriminar contra a maioria. Falo da maioria, de brancos, mulatos, negros e índios, heterossexuais e gays, jovens mães e homens idosos que não conseguem se aposentar, todos os grupos de empregados da cidade. Christine Quinn, líder da Câmara dos Vereadores e candidata declarada à sucessão de Michael Bloomberg em novembro, passou três anos obstruindo a votação de uma lei municipal que permitiria 5 dias de licença médica remunerada por ano a empregados de empresas com mais de 15 funcionários. Segure seu queixo, caro leitor: se uma pessoa trabalhando em tempo integral numa empresa em Nova York tiver 40 graus de febre e um caso extremamente contagioso de influenza, vai ser mandada para casa com seus germes, é claro, e pode ter seu salário descontado pela falta.
Cristine Quinn, a candidata democrata que tanto lutou contra a própria discriminação, parece achar que ficar doente é uma fraqueza moral ou uma afronta cívica ao lucro de um empregador. Graças em parte a uma denúncia da lendária feminista Gloria Steinem, que ameaçou retirar seu apoio a Quinn, a gritaria foi o bastante para a candidata refazer seu cálculo aritmético eleitoral mas não sem antes diluir o Projeto de Lei. Que o bilionário Bloomberg promete vetar.
A frase mais sensata sobre a compaixão seletiva de gente como Christine Quinn foi pronunciada pelo primeiro político eleito para o Congresso a sair do armário, em 1987. Barney Frank, recém-aposentado aos 73 anos, disse que sua atração sexual por homens é hoje mais tolerada do que sua atração pelo papel do governo na vida dos americanos.
Uma mulher de 82 anos, Edie Windsor, viúva de outra mulher, derreteu o coração de uma boa parte do país, pedindo à Suprema Corte que não prolongasse a exclusão social que ela enfrentou durante 40 anos com sua companheira Thea, morta em 2007.
Uma juíza franzina de 80 anos, sobrevivente de duas batalhas contra o câncer, cunhou com seu característico senso de humor oneologismo "casamento desnatado". A juíza Ruth Bader Ginsburg expôs ao ridículo o arrazoado do advogado que defendia a perpetuação do sofrimento de gente como Edie, perguntando porque ele rebaixava a instituição do casamento tentando impor duas castas: a da união integral, disponível para héteros e um casamento diluído para gays. Milhões comemoraram o gol de placa de Ruth, cuja voz trêmula nos argumentos gravados foi ouvida em escala viral.
Quando o público passa dias na chuva e no frio da capital, sem desordem, esperando conseguir uma das poucas vagas disponíveis para espectadores nas sessões da Suprema Corte, a memória de uniformes verde-oliva se torna ainda mais distante.
O casamento entre pessoas do mesmo sexo, como o Gênio que escapou da lâmpada, não será mais aprisionado na garrafa da contracultura. A cara do movimento é Edie. Ou um universitário da Califórnia, um dos 40 mil filhos de casais homossexuais que cresceu sem compreender a pecha de ilegitimidade que o governo federal lhe impingiu com o lamentável Ato de Defesa do Casamento. O ato conhecido pela abreviação Doma que Bill Clinton assinou sozinho, numa madrugada em campanha de reeleição, em 1996, está em julgamento na Suprema Corte. O cálculo eleitoral do ex-presidente que ajudou a reeleger, em novembro passado, o primeiro presidente a defender o casamento gay, lhe custou amizades e parte da reputação. Clinton tem feito o possível para se penitenciar, num reconhecimento extraordinário de que seu oportunismo pode ter atropelado a Constituição.
Mas a discriminação, é bom lembrar, não afeta apenas minorias, sejam elas raciais ou sexuais. A mulher que quer se tornar a primeira prefeita lésbica de Nova York, a mulher cujo casamento com outra mulher foi um dos acontecimentos sociais do ano em 2012, fez outro cálculo eleitoral para discriminar contra a maioria. Falo da maioria, de brancos, mulatos, negros e índios, heterossexuais e gays, jovens mães e homens idosos que não conseguem se aposentar, todos os grupos de empregados da cidade. Christine Quinn, líder da Câmara dos Vereadores e candidata declarada à sucessão de Michael Bloomberg em novembro, passou três anos obstruindo a votação de uma lei municipal que permitiria 5 dias de licença médica remunerada por ano a empregados de empresas com mais de 15 funcionários. Segure seu queixo, caro leitor: se uma pessoa trabalhando em tempo integral numa empresa em Nova York tiver 40 graus de febre e um caso extremamente contagioso de influenza, vai ser mandada para casa com seus germes, é claro, e pode ter seu salário descontado pela falta.
Cristine Quinn, a candidata democrata que tanto lutou contra a própria discriminação, parece achar que ficar doente é uma fraqueza moral ou uma afronta cívica ao lucro de um empregador. Graças em parte a uma denúncia da lendária feminista Gloria Steinem, que ameaçou retirar seu apoio a Quinn, a gritaria foi o bastante para a candidata refazer seu cálculo aritmético eleitoral mas não sem antes diluir o Projeto de Lei. Que o bilionário Bloomberg promete vetar.
A frase mais sensata sobre a compaixão seletiva de gente como Christine Quinn foi pronunciada pelo primeiro político eleito para o Congresso a sair do armário, em 1987. Barney Frank, recém-aposentado aos 73 anos, disse que sua atração sexual por homens é hoje mais tolerada do que sua atração pelo papel do governo na vida dos americanos.
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