O GLOBO - 12/03
Brandon Bryant tem agora o alvo visível: uma casa de estuque. Ao lado, um pequeno estábulo. À ordem de abrir fogo, aperta um botão e o teto da casa surge enquadrado pela luminosidade de um laser. Ao lado, o colega aciona um outro controle manual. A cerca de dez mil quilômetros, nos céus do Afeganistão, uma pequena aeronave não tripulada, um drone, dispara um míssil Hellfire (fogo do inferno). Começa uma contagem regressiva de dezesseis segundos para o impacto. Brandon observa. As imagens, transmitidas por satélite, aparecem no monitor. Faltando apenas três segundos, surge uma criança perto da casa. Pouco depois, a luz da explosão. A casa e a criança desaparecem numa nuvem de pó.
Brandon pergunta ao colega: “Matamos uma criança?” “Eu creio que era uma criança”, responde o outro. “Era mesmo uma criança?” Uma voz de um outro mundo, ou melhor, do comando, ressoa na sala: “Não, era um cachorro.” Um cachorro andando sobre dois pés?
A história foi narrada pelo próprio Brandon ao semanário alemão “Der Spiegel”, correu mundo e contribuiu para alimentar o debate que se acirrou nos EUA sobre o uso — e o abuso — destas máquinas voadoras letais, o máximo da alta tecnologia aplicada à guerra “limpa”.
William Tart, responsável no Pentágono pelos drones, descreve os seus “benefícios”. Diz, sem sorrir, que são “humanitários”, e cita o trabalho realizado para socorrer as vítimas do terremoto no Haiti. Graças a um deles, foi possível localizar o comboio de Muhamar Kadhafi e liquidá-lo. Os drones, matando terroristas, “salvam vidas”. Opinião compartilhada pela maioria dos soldados no Afeganistão, e por 62% dos cidadãos estadunidenses, segundo recente pesquisa do Instituto Pew. Ele jura que “os mísseis só são disparados quando mulheres e crianças não estão à vista”. E só perde a calma quando ouve críticas à “guerra invisível”, considerada uma guerra de covardes, que matam gente em poltronas confortáveis e ambientes refrigerados, longe da lama, do sangue — e do medo — dos verdadeiros campos de batalha. Nada disso: “Observamos os homens durante meses, brincando com seus animais. Conhecemos seus hábitos como conhecemos os de nossos vizinhos. Assistimos a seus enterros”. Brandon ecoa: “No começo da noite, as pessoas, para escapar do calor, vêm deitar nos tetos das casas e fazem amor — dois pontos infravermelhos que se fundem — sob nossas vistas.”
Assim, a guerra com os drones teria algo de pessoal, distante, mas íntima. Os envolvidos reclamam de conflitos psicológicos e de traumas. Alguns não conseguem dormir. Ou sonham em “infravermelho”. Perdem relações afetivas e se consolam com drogas. Brandon lamenta-se: “Vi morrerem homens, mulheres e crianças. Nunca imaginei que iria matar tanta gente.” Depois de seis anos, com um diagnóstico de estresse pós traumático, não renovou o contrato que o vinculava à Força Aérea. A gota d’água veio quando ouviu um colega gritar: “Então, qual destes filhos da puta a gente vai matar hoje?”
Brandon pulou fora, um parafuso enferrujado. Será substituído por outro, seduzido pelas promessas de salários, reconhecimento e, no final, bolsa para cursar uma universidade.
A matança vai continuar, deixando um rastro de ressentimento e ódio. Estimativas imprecisas falam de 2.500 a 3.500 mortos. Quantos inocentes? Quantos cachorros que andam sobre dois pés? Durante o governo Bush, houve menos de 50 bombardeios de drones. Com Obama, as ações multiplicaram-se por seis, a partir de bases nos EUA, na África e na Ásia.
Em 2011, contudo, dois cidadãos estadunidenses foram assassinados por drones no Iêmen, causando comoção em Washington. Todos aceitavam a morte de estrangeiros. Mas de cidadãos estadunidenses? Desencavaram uma entrevista de H. Clinton, então secretária de Estado, em que ela reconhecia que os drones estavam matando cúmplices, operadores e financiadores dos terroristas. Obama não estaria indo longe demais? E se o governo decidisse atacar com drones cidadãos estadunidenses no próprio território dos EUA? O procurador-geral admitiu a hipótese, mas só em “circunstâncias extraordinárias”. Os drones, porém, não atacariam cidadãos “não engajados em combate”. Mas os operadores, financiadores e cúmplices não estariam, indiretamente, “engajados em combate”?
Medea Benjamin, ativista de direitos humanos, suscitou uma questão incômoda: e se a Rússia localizar um terrorista checheno em Nova York, Putin teria o direito de lançar um míssil para matá-lo? A pergunta, considerada despropositada, não mereceu atenção. Um dia, talvez, ela possa ser seriamente considerada. Neste dia, se ocorrer, eventuais críticas do governo dos EUA não merecerão credibilidade.
O que restará então?
A Brandon Bryant, recolhido à Montana natal e a crises de consciência, ver os prados verdejantes e as montanhas.
Aos que já morreram, o pó em que se transformaram.
Ao presidente Obama, o Prêmio Nobel. Da Paz.
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