FOLHA DE SP - 28/02
Em torno da renúncia do papa Bento 16, há mais dúvidas, passadas e futuras, do que certezas
ROMA - Em meio século de jornalismo, que completo este ano, jamais acompanhei um evento tão estranho quanto tudo o que cerca a renúncia do papa Bento 16.
Começa pelo ineditismo de um papa participar de sua própria despedida pública, como o fez ontem Bento 16. Todos os demais papas estavam mortos quando o público se reuniu para dizer adeus ou, então, foram forçados à renúncia, perdendo direito às homenagens e pompas que só a realeza e algumas igrejas, como a católica, são capazes de produzir em um mundo cada vez mais informal.
Continua com o fato de que Joseph Ratzinger, que se tornou Bento 16 ao ser eleito papa em 2005, não volta a ser só Ratzinger, mesmo tendo renunciado ao papado que lhe deu o novo nome. Continua a poder ser chamado de Bento 16, agora com o título inédito de papa emérito.
Mais complicado, do ponto de vista de quem está habituado a conviver com as conspirações mundanas, é o fato de que tampouco perde o direito a ser chamado de Sua Santidade. Como o seu sucessor também será Sua Santidade, teremos convivendo nos escassos 0,44 km² do Vaticano duas Santidades.
Um dos papas, o novo, terá a obrigação de comandar a vida da igreja, como é óbvio, mas o papa que se tornará emérito disse ontem que "continuará a acompanhar a vida da igreja", orando.
Estou contaminado pelas intrigas mundanas? Provavelmente sim, mas convenhamos que o fato de que o Anel do Pescador, um dos símbolos do papado, será destruído (em cerimônia privada) assim que Bento 16 formalizar a renúncia, diz alguma coisa sobre intrigas eclesiais.
A destruição da peça, que contém 35 gramas de ouro, é uma tradição destinada a evitar que o, digamos, selo papal possa continuar a ser usado por quem deixou de ser papa. Uma lembrança de que a vida da igreja ao longo dos séculos esteve prenhe de conspirações.
E não estou me referindo a um passado remoto. O chamado Vatileaks, o vazamento de documentos do papa, demonstra claramente que conspiradores têm acesso ao apartamento papal. Terão acesso também ao aposento do papa emérito quando ele se instalar de volta no Vaticano, depois da estada em Castel Gandolfo, a residência de verão dos papas.
A sacudida na igreja representada pela renúncia de Bento 16 poderá ser um freio de arrumação na divisão da igreja, que o próprio papa reconheceu, na sua homilia da missa de Cinzas?
Como consequência desse ambiente, um jornal da terra do papa -"Die Tagszeitung"- teve a coragem de tascar uma manchete chocante no dia da renúncia: "Gott sei Dank" (Graças a Deus). Pura iconoclastia, assim justificada: "É bom que Bento 16 se vá, porque nada funciona nem no Vaticano nem no resto do mundo católico".
Esse tipo de atitude fecha o meu circuito de estranhezas, porque sou de uma geração que pisava em ovos para falar do papa. Como bem notou Janio de Freitas dias depois da renúncia, ela foi uma espécie de "liberou geral" para tratar desabridamente de temas da igreja. É, pois, navegar num mundo estranho.
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