Corre o rumor de que Havana pretende substituí-lo por de incompetência funcional.Eles lhe devem uma medalha
A Carlos Zamora Rodríguez, embaixador de Cuba no Brasil:
Circulam rumores de que a passagem da blogueira Yoani Sánchez pelo Brasil terá efeitos desastrosos para sua carreira diplomática. Escrevo para acalmá-lo. À luz dos critérios políticos normais, qualquer um dos quatro motivos mencionados como causas possíveis de sua queda seria suficiente para fulminar um diplomata. Contudo, os governos de Cuba e do Brasil não se movem por critérios normais.
Comenta-se, em primeiro lugar, que o Planalto solicitaria sua remoção em reação à interferência ilegal da Embaixada nos assuntos internos do país. De fato, é ultrajante reunir militantes do PT e do PCdoB na representação diplomática cubana para distribuir um CD contendo calúnias contra uma cidadã em visita ao Brasil. Mas não se preocupe. Sob Lula, quando prendeu e deportou os pugilistas cubanos que tentavam emigrar, o governo brasileiro violou a Carta Interamericana de Direitos Humanos para atender a um desejo de Havana. Dilma Rousseff só precisa ignorar a violação de leis nacionais para encerrar o “caso Yoani”.
Em segundo lugar, corre o rumor de que Havana pretende substituí-lo por razões de incompetência funcional. A causa seria o vazamento para Veja das informações sobre a reunião na Embaixada, que contou com a presença de Ricardo Poppi Martins, auxiliar do ministro Gilberto Carvalho – uma notícia depois confirmada pela própria Secretaria-Geral da Presidência. Certamente, as agências de inteligência de seu país não apreciaram a condução desastrada da operação, mas duvido que o governo de Raúl Castro desconsidere os fatores atenuantes: a inconveniência representada pela liberdade de imprensa e os “dilemas morais pequeno-burgueses” de militantes de esquerda não submetidos ao centralismo do Partido Comunista Cubano.
Um terceiro motivo para seu afastamento residiria nas implicações lógicas das acusações difundidas pela Embaixada contra a blogueira. O CD qualifica Yoani como “mercenária financiada pelo governo dos EUA” para “trabalhar contra o povo cubano”. Afirmar isso, porém, significa dizer que, mesmo dispondo das provas da atuação de uma agente inimiga em seu território, o governo de Cuba optou por não prendê-la e processá-la, colocando em risco a segurança do país. O raciocínio, impecável, destruiria um diplomata de um país democrático, mas não arranhará sua reputação perante o regime dos Castro: o discurso totalitário não almeja a persuasão racional, não se deixa limitar pela regra da consistência interna e não admite o escrutínio da crítica.
Afigura-se mais grave a quarta razão que apontam como ameaça à sua carreira. Ao estimular a perseguição movida por hordas de militantes organizados contra Yoani, a Embaixada amplificou a voz e o alcance da mensagem da blogueira, produzindo um efeito contrário ao desejado por Havana. Construído no terreno de um cínico pragmatismo político, o argumento parece irretocável, mas não creio que deveria alarmá-lo. Na perspectiva do regime cubano, as repercussões da visita sobre a opinião pública são o preço a pagar pela afirmação de um princípio inegociável do totalitarismo: os dissidentes nunca estão a salvo da violência real ou simbólica do “ato de repúdio”.
O “ato de repúdio” é o equivalente político do estupro de gangue. Na China da Revolução Cultural, onde alcançou o apogeu, a prática chamava-se “assembleia de denúncia”. Segundo o relato de Jung Chang, uma jovem chinesa que testemunhou aqueles tempos, a Universidade de Pequim realizou sua pioneira “assembleia de denúncia” a 18 de junho de 1966, quando o reitor e dezenas de professores sofreram espancamentos e foram obrigados a permanecer ajoelhados durante horas em meio à multidão histérica. “Enfiaram à força em suas cabeças chapéus cônicos de burro, com slogans humilhantes” e “derramaram tinta em seus rostos para deixá-los negros, a cor do mal” (Cisnes selvagens: três filhas da China). A matriz chinesa, nós dois sabemos, inspirou a ditadura cubana, cujos “atos de repúdio” excluem a tortura mas não a violência física moderada, a intimidação direta e uma torrente de insultos.
Yoani relata no seu blog o primeiro “ato de repúdio” que assistiu, quando tinha cinco anos (“As pessoas gritavam e levantavam os punhos ao redor da porta de uma vizinha”), e um outro, do qual foi vítima junto com as Damas de Branco (“as hordas da intolerância cuspiram em nós, empurraram e puxaram o cabelo”). No “ato de repúdio”, o “inimigo do povo” deve ser despido de sua condição humana e convertido em joguete da violência coletiva. A agressão física é um corolário último desejável, mas não é um componente necessário do ritual – e, dependendo das circunstâncias políticas, deve ser prudentemente evitada. Estou convicto de que sua embaixada levou isso em conta quando indicou o caminho dos atos contra Yoani.
Seu conhecido Breno Altman, um quadro político do PT, defendeu os “atos de repúdio” contra a blogueira em debate televisivo, alegando que “ninguém saiu ferido”. De fato, apenas em Feira de Santana chegaram a empurrar Yoani e a puxar-lhe o cabelo. Na mesma cidade e em São Paulo, gangues de vândalos a insultaram em público, cassaram-lhe o direito à palavra, ameaçaram pessoas que queriam escutá-la, provocaram o cancelamento de eventos literários e cinematográficos. Tudo isso caracteriza constrangimento ilegal, um crime contra as liberdades públicas e individuais.
No Brasil, a palavra de Yoani desmoralizou a ditadura cubana. Mas, nessa particular guerra de princípios, sua embaixada venceu: a polícia não interferiu, os “intelectuais de esquerda” silenciaram, a editora que publica Yoani eximiu-se da obrigação de protestar e uma imprensa confusa sobre a linguagem dos valores democráticos qualificou os vândalos como “manifestantes”. Por sua iniciativa, o “ato de repúdio” fincou raízes no meu país. Creio que lhe devem uma medalha.
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