FOLHA DE SP - 02/01
Sempre se aponta a inspiração divina dos textos. Aí começa a dificuldade. Há contradições, expurgos posteriores de textos e discórdia sobre autenticidade
Judeus devotos talvez respondam: antigos hebreus inspirados por Deus ou de quem receberam revelações em encontros pessoais. Cristãos devotos acrescentariam que homens do credo judaico reformado por Jesus também contribuíram com outros textos inspirados por Deus.
Elemento comum nessas respostas é a ideia de inspiração divina dos textos bíblicos. Dela deriva toda a autoridade sacra da Bíblia. Bíblias cristãs explicitam na segunda Epístola a Timóteo 3:16: "Toda escritura é inspirada por Deus (...)".
Aí começam as dificuldades.
Alguns arqueólogos, paleógrafos e outros especialistas pigarreiam: Paulo deve ter escrito, sim, sete das treze cartas atribuídas a ele, mas três das outras seis, hum, são de autoria duvidosa -e as demais são decididamente não paulinas, inclusive as duas a Timóteo.
Pareceres como esse indicam ceticismo quanto à autoria dos textos compilados como "livros" da Bíblia.
Em 2 Macabeus 2:13-14 se lê que Neemias (século 5 a.C.) e Judas Macabeus (século 2 a.C.) compilaram textos presumivelmente bíblicos. Mas até hoje a arqueologia não recuperou nenhum texto original desses: apenas cópias de cópias, todas posteriores ao século 15 a.C. Datação de carbono atesta que os mais antigos dos manuscritos do mar Morto, descobertos de 1947 a 1956, são cópias escritas no século 5 a.C.
Nem todo o material do Velho Testamento é originalmente hebraico. A narrativa do dilúvio, por exemplo, reconta episódio da epopeia de Gilgamesh, poema sumério escrito séculos antes de haver menção histórica a hebreus.
Em Gênesis 2:7-22, Deus cria o homem depois de transcorridos os sete dias da criação. Em seguida, cria o Éden e seus rios, ouro e pedras preciosas; só então anestesia o homem para lhe efetuar ressecção duma costela e com esta criar a mulher.
Mas no capítulo anterior, 1:27, Deus cria do pó o homem e a mulher, juntos, no sexto dia da criação. Ocorre pois, nos dois capítulos, clara colagem de documentos diferentes; as duas narrativas provêm de fontes distintas. Outra evidência de montagem são abundantes redundâncias e contradições, quer no mesmo livro, quer de um livro para outro.
A Bíblia cristã já foi bem diferente. Antes do século 13, nenhum livro dela se dividia em capítulos como hoje; numeração dos versículos é invenção do século 16. Ao longo da era cristã, a Bíblia passou por acréscimos de livros e expurgo de outros, tidos como "apócrifos". Este eufemismo conota faltar ao texto a tal inspiração divina. Bíblias protestantes excluem como apócrifos treze livros da Bíblia católica, inclusive os dois Macabeus.
Autenticar inspiração de cada livro abrangeu discórdia furiosa, tortura, hereges à fogueira, até guerras, disputas que remontam a indicações aceitas ou rejeitadas, por votação, em sínodos e concílios (assembleias de bispos). De cada um deles resultava um cânone, coleção de material atestado como autêntico; isto é, de inspiração divina.
Bispos dos primeiros séculos da era cristã montaram cânones segundo arbítrios pessoais, mas decisões colegiadas subsequentes reformariam tais seleções. Teólogos como o próprio Martinho Lutero (1483-1546) teriam preferido excluir, se pudessem, livros como Cântico dos Cânticos, Ester, várias epístolas e Apocalipse. "A história de Jonas é tão monstruosa a ponto de ser absolutamente incrível", escreveu Lutero em "Colóquios Familiares".
Hoje, católicos, protestantes, cristãos ortodoxos e judeus creem na inspiração divina do Pentateuco (ou Torá). Quanto aos demais livros, não há consenso.
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