O Estado de S.Paulo - 02/01
Estamos no segundo dia de 2013, mas o ritual de transição - um ato teatral com seus abraços, suas imensas promessas e outros fogos de artifício sem os quais não teríamos consciência do tempo - ainda está na nossa memória. Esse 2012, que para alguns anunciava o fim do mundo, foi mais um testemunho da vitória do princípio da realidade. Pois o ano chegou ao fim, mas seguimos com um mundo que permanece.
O tempo, entretanto continua passando, inexorável. As festas materializam calendários e, sem elas, jamais iríamos saber que passamos do 12 (no jogo do bicho, a dezena do elefante e do julgamento com outros escândalos em cascata...) para o 13, a dezena do galo.
Os sinais e tendências que encontramos depois de viver 2012, provam o seu fim. Já o ano-novo é uma caixa de palpites. Como tudo que tem inicio, meio e fim, 2012 morre paquidérmico. Mas 2013, que apenas principia, traz a leveza imprevisível e nervosa do galo. Esse 13 que a ciência brasileira dos sonhos associa a desavenças. Sonhou com briga? Joga no galo! Esse galo de todas as brigas; um espetáculo que é legalmente proibido, mas culturalmente aprovado.
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Atacado de incertezas, fui nesta virada à missa de sétimo dia de um conhecido. Era um ateu, mas os amigos (todos descrentes) fizeram celebrar um missa e não o levaram ao túmulo sem a bênção final do caixão. Viveu como ateu e morreu como um bom católico, disse para mim mesmo. Viveu como quis, mas morreu como brasileiro.
Porque tanto na vida quanto na morte, nós, brasileiros, vivemos uns para os outros. Mesmo quando ele dizia que era ateu, a família e, quem sabe, até mesmo os mais radicais do seu partido, ninguém acreditava. A maioria supunha que seu ateísmo fosse parte de um vasto arsenal de bravatas individualistas. A morte deixa ver como não pertencemos a nós mesmos, mas aos amigos. O Zé é meu amigo, mexeu com ele, mexeu comigo! Quer coisa mais reveladora?
Nosso ateísmo é tão formal quanto o nosso individualismo, ambos prontos para o desmanche na primeira demanda de um conhecido ou parente. A polícia reforça, a casa aumenta. Quem não quis deixar de ir à missa domingo e acabou desistindo porque um domingo sem missa não é domingo?
Conheci uma senhora que, de dia, fazia parte da congregação do Sagrado Coração de Jesus; mas, à noite, realizava memoráveis sessões espíritas na sua sala de jantar. A nobre mesa de comer, transformando-se no altar em que os "irmãozinhos sofredores" encontravam alento.
Visitando um amigo baiano com um doutoramento em filosofia pela Universidade de Paris e filiado ao candomblé, vi em sua casa um belo altar budista em que ele meditava depois de rezar o terço ao lado de um sacerdote filiado à Teologia da Libertação. Pelo que sei, ele continua tão católico quanto todos nós e, se tudo correr bem, iremos todos ter uma bela missa de sétimo dia.
"Neste ano-novo, fomos à praia vestidos de branco dos pés à cabeça. As mulheres da família carregavam buquês de flores a serem ofertados para Iemanjá. Estávamos um tanto preocupados com o trânsito - prosseguiu Raimundo Vieira, traumatologista e médium da linha cruzada -, porque não queríamos perder a bela Missa do Galo, sempre realizada com enorme espiritualidade pelo padre Varela em bom e sonoro latim, seguindo as melhores tradições do medievo ocidental."
Ao ouvir essas palavras, lembrei-me de um velho ano-novo de 1960 quando, em companhia de amigos, fui à praia de Icaraí e vi uma das mais belas moças de nossa vizinhança - uma mulher que usava maiôs de fazer parar até mesmo as mais candentes discussões políticas, tão comuns daqueles tempos de "esquerda e direita" - possuída por um Preto Velho, fumando desbragadamente um enorme e fedorento charuto. No dia seguinte fomos encontrá-la na mesma praia, fagueira e lindíssima, com a sua costumeira medalhinha de Nossa Senhora das Graças no pescoço.
A cada ano essas múltiplas facetas surgem mais claramente. Um lado meu diz que o mundo fica cada vez mais cristalino e mais chato porque a tecnologia ocidental tem origem em Lutero e Calvino, que queriam colocar o céu na terra e idealizavam uma vida social absoluta e absurdamente transparente. Ainda não temos casas de vidro, como propôs o velho surrealista comunista André Breton, mas o nosso aparato eletrônico é a chave para essas moradas.
Se o ano do elefante, o 2012 que acaba de fechar, mostrou muita gente importante com muitas caras; o do galo - esse 2013 que apenas começa - promete muitas rinhas e movimentos surpreendentes. Feliz ano-novo!
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