O GLOBO - 29/01
A tragédia de Santa Maria impõe à sociedade uma séria reflexão sobre a cultura nacional da leniência,do descaso, da corrupção
As consequências imediatas da tragédia de Santa Maria devem se dar no terreno mesmo das providências para apurar causas e responsabilidades da catástrofe. Neste sentido, o poder público, em todas as instâncias cujos órgãos se relacionam com o incêndio na Boate Kiss, deve dar curso à imperiosa obrigação, moral e legal, de levar às últimas consequências o inquérito sobre o episódio. Nele, irresponsabilidades, leniência e falta de senso se misturaram para provocar uma madrugada de horror em que mais de 230 jovens morreram, e deixou outra centena entre o risco de falecer e carregar pelo resto da vida sequelas físicas e/ou psicológicas.
Inquéritos são uma obrigação policial, mas provê-los não é iniciativa suficiente para dar respostas a uma tragédia que ficará marcada na história do país. Primeiro, e o mais óbvio, porque nenhuma providência, em termos de medidas legais ou administrativas, que se tome agora será capaz de reparar a dor das famílias dos jovens que tiveram a vida interrompida de forma tão estúpida e dolorosa. Segundo, porque a gravidade da tragédia, e de todas as circunstâncias que a ela parecem ter levado, impõe que se avance muito além da formal apuração de culpas e, mesmo, da condenação dos responsáveis.
É preciso haver consciência, para além do que aconteceu na madrugada de domingo, que há no país uma rede em que se entrelaçam inépcia administrativa, corrupção, omissão do poder público e conformismo do cidadão comum responsável por enlutar o país. Muitas vezes, no varejo, como nos acidentes de estrada nos feriadões. A tragédia de Santa Maria impõe à sociedade uma séria reflexão sobre a cultura nacional da leniência, do descaso, da corrupção (em suas duas faces, a do corruptor e a do corrompido, bem como em todas as suas dimensões, desde a propina com que se compra o perdão do guarda da esquina até os grandes golpes contra o Erário).
É preciso partir do princípio de que, nessa questão, o mea culpa cabe a todos: agentes públicos, proprietários de estabelecimentos que rebarbam normas de segurança, cidadãos comuns que igualmente as desprezem (inclusive em atentado contra seus direitos).
Um ponto a ser liminarmente refutado é que teria havido uma “fatalidade” em Santa Maria. Não houve. O noticiário está cheio de evidências de que diversas causas, no terreno das responsabilidades humanas, contribuíram para o desastre. Crer em “destino” não ajuda o país a rever procedimentos danosos, enraizados na cultura nacional, que contribuíram para fazer da Kiss o emblema de um acontecimento que se alinha entre os mais funestos do mundo, comparável a incêndios como o que em 2004 matou quase 200 pessoas na Argentina, e o que provocou a morte de outras 300 na China, em 2000 — ambos também em boates.
Em tudo, das causas às consequências, Santa Maria é a trágica expressão do “lado b” do Brasil,
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