quinta-feira, dezembro 20, 2012

Niemeyer, a arquitetura da destruição - DEMÉTRIO MAGNOLI

O GLOBO - 20/12


‘Nunca escondi minha posição de comunista. Os governantes compreensivos, que me convocam como arquiteto, sabem da minha posição ideológica. Pensam que sou um equivocado e eu deles penso a mesma coisa’, escreveu Niemeyer



Num documentário dos anos 1920, pode-se ver Le Corbusier esfregando um lápis preto grosso sobre uma vasta área do mapa do centro de Paris, “com o entusiasmo do Bombardeiro Harris planejando a aniquilação de uma cidade alemã na Segunda Guerra Mundial”, escreveu Theodore Dalrymple em um saboroso artigo no “City Journal”. O célebre arquiteto esquematizava a fantasia totalitária do Plano Voisin, uma coleção geométrica de 18 torres de escritórios cruciformes de sessenta andares, completadas por conjuntos habitacionais delimitando superquadras. Você pode gostar do Palácio Capanema (eu gosto), da Catedral de Brasília (adoro), do Itamaraty (é lindo), da sede do PCF (não gosto) e até do Memorial da América Latina (detesto) ou do MAC de Niterói (acho ridículo), mas não tem o direito intelectual de separar a obra de Oscar Niemeyer de suas raízes doutrinárias. Niemeyer inscreve-se na matriz de Le Corbusier, o fundador de uma arquitetura da destruição que, consagrada à estética do poder, odeia a história, o espaço público e as pessoas comuns.

Certamente Niemeyer não é um simples epígono de Le Corbusier, com suas “grandes caixas sobre varetas” (Frank Lloyd Wright), uma “marca registrada vulgar da forma moderna” (Lewis Mumford). O brasileiro foi um inventor: seu traço curvou sinuosamente o concreto, tropicalizando a arquitetura moderna. Contudo, suas estratégias compositivas e seu repertório fechado de formas não derivam de supostas inspirações renascentistas ou barrocas, mas dos princípios neoclássicos, que são os de Le Corbusier. Para além disso, Niemeyer compartilhou com seu mestre a crença fundamental na “missão civilizatória” do Estado — isto é, no privilégio estatal de mobilizar ilimitadamente a terra urbana para esculpir a cidade (e a sociedade) segundo os ideais da elite dirigente. Os dois arquitetos solicitam o patrocínio de tiranos — ou melhor, de tiranos com uma Visão.

Na imprensa brasileira, a morte de Niemeyer foi acompanhada por dois tipos predominantes de avaliações. De um lado, afirmou-se que sua obra é genial pois reflete seu “pensamento humanista” — uma opinião abominável, mas coerente. De outro, afirmou-se que sua obra, genial, deve ser separada de suas deploráveis convicções políticas — um diagnóstico incoerente e inconsequente. A arquitetura de Niemeyer, como a de Le Corbusier, não é apenas uma derivação de suas inclinações ideológicas, mas também uma plataforma para sua desejada aliança entre os arquitetos e o poder político. Le Corbusier serviu tanto a Stalin quanto ao regime colaboracionista de Vichy. “A França precisa de um Pai”, clamou o arquiteto pouco antes da publicação de “A Cidade Radiosa”, em cujo frontispício lia-se: “Este livro é dedicado à Autoridade”. Eis a chave para decifrar as suas obras — e as de Niemeyer.

A Piazza della Signoria, que não tem nenhuma árvore, é uma maravilha do espírito humano. Não é preciso reproduzir a crítica romântica, que condena o “concreto” e exige o “verde”, nem é necessário aderir aos princípios da arquitetura orgânica para repudiar o monumentalismo brutal dos sacerdotes do Templo Moderno. “O plano deve governar. A rua deve desaparecer”, escreveu Le Corbusier em 1924, indicando o rumo que seria adotado por Niemeyer. O impulso destrutivo está contido em cada uma das intervenções arquitetônicas de ambos, inclusive nas mais belas.

Uma edificação de Niemeyer jamais se relaciona significativa ou funcionalmente ao entorno construído, que ele despreza, pois não emergiu de seu traço. Os espaços residuais entre volumes projetados pelo arquiteto nunca adquirem identidade e servem somente para a contemplação de seus monumentos à Autoridade. Quanto maior é a escala do projeto, mais evidente se torna a “modernidade anacrônica” de Niemeyer. “O papel ordenador do espaço aberto, com suas ruas, praças, pontos de encontro e mercados” dilui-se, em Brasília, “num espaço sem limites e sem outra função que a de emoldurar edifícios isolados e esculturais” (J. C. Durand & E. Salvatori).

A estética de Niemeyer é uma declaração política. Em Brasília, como registrou James Holston, o contraste tipológico entre os edifícios públicos, “objetos excepcionais, figurais, de cunho monumental” e os edifícios residenciais, “objetos seriais, repetidos, que são cotidianos”, representa a utopia regressiva almejada pelo arquiteto. Tinha razão Alberto Moravia quando escreveu para um jornal italiano que a capital recém-inaugurada fazia as pessoas se sentirem “como os minúsculos habitantes de Lilliput” e procurarem “no céu vazio a forma ameaçadora de um novo Gulliver”.

“Nunca escondi minha posição de comunista. Os governantes compreensivos, que me convocam como arquiteto, sabem da minha posição ideológica. Pensam que sou um equivocado e eu deles penso a mesma coisa”, escreveu Niemeyer, num exercício de cínico ilusionismo. Você sabe qual é a espessura média de concreto por metro quadrado no Memorial da América Latina? Nenhum “governante compreensivo” se equivoca ao convocar o “arquiteto comunista” cujos projetos oferecem as melhores oportunidades no jogo do superfaturamento de obras públicas.

Vivemos em tempos de ressurgimento de um verde-amarelismo satisfeito, balofo e triunfalista. Felipão, Lula, Eike Batista, José Sarney cristalizaram-se como patrimônios da nacionalidade. Na hora da morte de Niemeyer, uma gosma indiferenciada de bajulação asfixiou o debate público e as páginas dos jornais se fecharam à diversificada crítica à arquitetura totalitária formulada por urbanistas, arquitetos, sociólogos, antropólogos e filósofos.

A discussão, tão necessária, sobre a cidade e a história, o Estado e a sociedade, a forma moderna e a vida urbana foi interditada pelo coro ruidoso das sentenças ornamentais do senso comum. “Brasil, ame-o ou deixe-o”: quanto demorará para alguma estatal restaurar o slogan de Emílio Médici?

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