FOLHA DE SP - 07/12
Glorificar a pobreza é coisa nossa, vide Sebastião Salgado e Portinari. Deixemos Niemeyer com sua utopia
Na época em que a Zélia confiscou o troco que eu tinha no banco, mão na frente e outra atrás, fui morar em Milão com um tio que marcou para mim uma entrevista de emprego na Mondadori.
Andei um bocado para chegar ao local combinado e, quando me dei conta, estava diante de um minipalácio Alvorada. Ao final da entrevista, o editor veio com um pedido inesperado. "Já que é brasileira, mande um recado ao Niemeyer, o arquiteto que projetou este edifício."
Muito solicita, eu logo me prontifiquei. "Niemeyer? Chapinha meu, xá comigo, ligo assim que chegar, me dá logo esse emprego aí, dottore!" O sujeito me encarou e mandou ver. "Diga a ele que é uma tortura viver neste ambiente. Que a luz que vem lá do forro bate diretamente na nuca, que a corrente de ar é insuportável e que termicamente isto é um inferno."
Duvido que tenha sido Oscar Niemeyer o responsável direto pela minha, digamos, não obtenção da vaga de redatora da revista "Panorama". Mas parece ser recorrente a reclamação de que ambientes criados pelo mestre tapuia transmitem a mesma sensação térmica de quem veste jeans e/ou camisas Lacoste: no inverno dão frio e, no verão, calor.
Ao contrário do editor que fez a entrevista comigo, sempre fui retumbantemente feliz dentro, fora e ao redor das obras de Niemeyer. Verti lágrimas ao me encontrar, pela primeira vez, fincada em solo desta nossa Mãe Gentil, na entrada da praça dos Três Poderes, em Brasília, diante da simbologia proposta e da beleza extraterreste daquele concreto todo.
Minha querida Oca, que eu escalava na infância pela escada de serviço externa, a marquise, que tantas vezes me viu ralar joelhos em tombos de bicicleta, e o prédio da Bienal, que eu invariavelmente me encontro fotografando em vez de olhar para as obras que contém, são edifícios que eu encaro como uma extensão da minha própria casa.
Nasci nas imediações do Ibirapuera e hoje vivo a poucas quadras do portão oito. Ainda me deslumbro com esse privilégio.
Minha amiga Ciça casou seu filho na catedral de Brasília. Sei que o ateu Niemeyer não concordaria, mas me agrada a ideia de que Jesus já deva ter rezado muito pai-nosso incógnito por ali, só para usufruir do brilho do sol entrando pelos vitrais azul e turquesa no fim da tarde.
Na idade dele -e sendo monumental-, Niemeyer tinha todo o direito de achar o que fosse sem ser questionado. Ninguém terá dúvida de que o fazia por lealdade a ideais os mais puros, oriundos de tempos em que ainda não se havia constatado que a alma humana, por questões meramente evolutivas, é movida a competitividade e a busca do individualismo. Ademais, glorificar a pobreza como forma é uma nossa tradição, vide Sebastião Salgado e Portinari. Por que Niemeyer haveria de se despir de sua utopia?
A lamentar, somente o fato de que isso o tenha impedido de perceber que o discurso que opõe Capital a Mão de Obra foi suplantado há muito pelo consenso de que a luta certa e justa não é mais aquela entre o patronato e operários, mas a que se trava entre a informação versus a mão invisível do Mercado. Pena ele não ter se dado conta de que o que conta agora são a vigilância constante pela regulamentação do sistema econômico e a viabilização legal da sustentabilidade.
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