sexta-feira, dezembro 07, 2012

Ideologia de Niemeyer foi mero detalhe - BARBARA GANCIA

FOLHA DE SP - 07/12


Glorificar a pobreza é coisa nossa, vide Sebastião Salgado e Portinari. Deixemos Niemeyer com sua utopia


Na época em que a Zélia confis­cou o troco que eu tinha no banco, mão na frente e outra atrás, fui morar em Milão com um tio que marcou para mim uma en­trevista de emprego na Mondadori.

Andei um bocado para chegar ao local combinado e, quando me dei conta, estava diante de um minipa­lácio Alvorada. Ao final da entre­vista, o editor veio com um pedido inesperado. "Já que é brasileira, mande um recado ao Niemeyer, o arquiteto que projetou este edifí­cio."

Muito solicita, eu logo me prontifiquei. "Niemeyer? Chapi­nha meu, xá comigo, ligo assim que chegar, me dá logo esse emprego aí, dottore!" O sujeito me encarou e mandou ver. "Diga a ele que é uma tortura viver neste ambiente. Que a luz que vem lá do forro bate dire­tamente na nuca, que a corrente de ar é insuportável e que termica­mente isto é um inferno."

Duvido que tenha sido Oscar Nie­meyer o responsável direto pela minha, digamos, não obtenção da vaga de redatora da revista "Pano­rama". Mas parece ser recorrente a reclamação de que ambientes cria­dos pelo mestre tapuia transmitem a mesma sensação térmica de quem veste jeans e/ou camisas La­coste: no inverno dão frio e, no ve­rão, calor.

Ao contrário do editor que fez a entrevista comigo, sempre fui re­tumbantemente feliz dentro, fora e ao redor das obras de Niemeyer. Verti lágrimas ao me encontrar, pela primeira vez, fincada em solo desta nossa Mãe Gentil, na entrada da praça dos Três Poderes, em Bra­sília, diante da simbologia proposta e da beleza extraterreste daquele concreto todo.

Minha querida Oca, que eu escala­va na infância pela escada de servi­ço externa, a marquise, que tantas vezes me viu ralar joelhos em tom­bos de bicicleta, e o prédio da Bie­nal, que eu invariavelmente me en­contro fotografando em vez de olhar para as obras que contém, são edifícios que eu encaro como uma extensão da minha própria casa.

Nasci nas imediações do Ibira­puera e hoje vivo a poucas quadras do portão oito. Ainda me deslum­bro com esse privilégio.

Minha amiga Ciça casou seu filho na catedral de Brasília. Sei que o ateu Niemeyer não concordaria, mas me agrada a ideia de que Jesus já deva ter rezado muito pai-nos­so incógnito por ali, só para usu­fruir do brilho do sol entrando pe­los vitrais azul e turquesa no fim da tarde.

Na idade dele -e sendo monumen­tal-, Niemeyer tinha todo o direito de achar o que fosse sem ser ques­tionado. Ninguém terá dúvida de que o fazia por lealdade a ideais os mais puros, oriundos de tempos em que ainda não se havia consta­tado que a alma humana, por ques­tões meramente evolutivas, é mo­vida a competitividade e a busca do individualismo. Ademais, glorifi­car a pobreza como forma é uma nossa tradição, vide Sebastião Sal­gado e Portinari. Por que Niemeyer haveria de se despir de sua utopia?

A lamentar, somente o fato de que isso o tenha impedido de perceber que o discurso que opõe Capital a Mão de Obra foi suplantado há muito pelo consenso de que a luta certa e justa não é mais aquela entre o patronato e operários, mas a que se trava entre a informação versus a mão invisível do Mercado. Pena ele não ter se dado conta de que o que conta agora são a vigilância constante pela regulamentação do sistema econômico e a viabilização legal da sustentabili­dade.

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