Construir "espigões" passou a ser politicamente incorreto. Igual plantar eucalipto
Faz um dia radioso e aqui estou eu, no alto do edifício Martinelli, esquina da rua Libero Badaró com a velha ladeira de São João, sobre a colina que se ergue entre os vales do Anhangabaú e Tamanduateí -o coração de São Paulo. São Bento, rua 15, rua Direita, sente-se neste belo pedaço de cidade a espessura histórica da vila dos jesuítas que se transformou em capital do café, metrópole industrial e centro financeiro.
Foi ali que um imigrante italiano, Giuseppe Martinelli, deu início, em 1924, à construção do arranha-céu, idealizado para ser o primeiro do Brasil e o "maior da América do Sul" -como diziam os jornais à época.
O prédio, projetado pelo arquiteto húngaro William Fillinger, da Academia de Belas Artes de Viena, foi concluído em 1929. Naquela época tocava-se no Rio um empreendimento semelhante, o edifício A Noite, na região portuária -obra do francês Joseph Gire e do brasileiro Elisiário da Cunha Bahiana. O arranha-céu carioca, que vai ser restaurado, apareceu recentemente na imprensa como "o primeiro da América Latina". Fiquei surpreso. O Martinelli, então, teria vindo depois?
Eis que, coincidentemente, encontro em São Paulo, o artista plástico Robero Cabot, na galeria Nara Roesler, onde ele participa de uma mostra inspirada na "op art", com curadoria de Vik Muniz. Muito boa, por sinal. Meu caro Cabot é bisneto de Gire e coordena o projeto de um livro sobre a obra do arquiteto no contexto arquitetônico da época.
Ele me diz que o arranha-céu carioca foi, na realidade, inaugurado depois do paulistano. "Tudo indica que foi em 1930. Pelo menos em 1929, não foi. Tenho cartas de meu avô, de 29, reclamando do andamento das obras".
Consta que Martinelli e Gire competiram ao longo da construção e que o italiano teria mandado fazer sua casa na cobertura do prédio para torná-lo o mais alto do país, suplantando o rival do Rio.
Ano a mais, ano a menos, andar a mais, andar a menos, o fato é que o Martinelli e o A Noite são marcos arquitetônicos do nascente processo de verticalização pelo qual passariam as duas grandes cidades nos anos seguintes, a exemplo do que já ocorria em outros lugares do mundo, a começar pelos Estados Unidos, os inventores do "skycraper".
Curiosamente, de décadas para cá, foi-se consagrando a ideia de que a verticalização é um mal. Construir "espigões" passou a ser politicamente incorreto. Igual plantar eucalipto. Não há dúvida de que a anarquia e a truculência da especulação imobiliária estimularam essa reação, no fundo sentimental e nostálgica.
Está claro, hoje, que é preciso verticalizar de maneira planejada. Como aproveitar a infraestrutura do centro expandido para ampliar oferta de moradia? O movimento de empurrar populações de baixa renda para as periferias tem que ser invertido, e isso não vai acontecer com a construção de casinhas. Avenidas como a Rio Branco, por exemplo, poderiam ser mais verticalizadas.
São Paulo está mudando. A metrópole fabril dá lugar à de serviços e as ruínas da industrialização são a base para construção da nova cidade. Há boa oportunidade para propostas inteligentes e ambiciosas, que pensem no entorno, na oferta de comércio e na convivência de pessoas de renda e classes diferentes.
A boa notícia é que esses projetos já existem e são grandes as chances de que venham a ser implantados nos próximos anos.
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