FOLHA DE SP - 27/11
O assalariado é quem paga a maior fatia do ajuste; no Brasil, a renda continua concentrada no capital
MADRI - Deixemo-nos de hipocrisia: as políticas ortodoxas de ajuste punem muito mais o salário que o capital. O caso da Espanha é ilustrativo e faz lembrar uma situação que os países em desenvolvimento conheceram bem nos anos 80/90.
Até o simbólico ano de 2008, quando quebrou o banco Lehman Brothers, os salários tinham uma fatia mais gorda que o capital no bolo da riqueza espanhola: 49,5% x 41,41%. É justo que assim seja, na medida em que os assalariados são muitos mais do que os capitalistas, e é natural que abocanhem uma fatia maior da riqueza (quanto maior, é uma discussão interminável).
A partir daí, o ajuste ortodoxo se fez cortando salários e empregos, de tal forma que, hoje, estão praticamente empatados: 45,6% para os salários e 45,12% para o capital (dados do terceiro trimestre, recolhidos pelo jornal "El País" para a capa de seu caderno dominical "Negócios").
Ou seja, os salários retrocedem quase quatro pontos percentuais, enquanto o capital ganha o mesmo tanto. Isso é equanimidade?
Desde o primeiro trimestre de 2009, não houve um único trimestre em que os salários tivessem obtido algum ganho, ao contrário do que vinha acontecendo desde pelo menos 2000. Pior ainda: embora o presidente do governo, Mariano Rajoy, diga que "o pior já passou" (frase pronunciada na presença da presidente Dilma Rousseff, na segunda passada), na vida real verifica-se que o maior retrocesso dos salários (5,5%) se deu justamente no trimestre mais recente, o terceiro.
Para os "fanáticos da dor", como os qualifica o Prêmio Nobel Paul Krugman, pode ser que o massacre seja apenas o prelúdio da recuperação. Pode ser. A economia espanhola, como qualquer outra, um dia sairá do buraco. Mas "a recuperação dos danos que esta crise está originando exigirá uma temporada longa", escreve o economista Emilio Ontiveros para "El País".
Diante de evidências tão contundentes, há segundos pensamentos entre os líderes europeus? Nem sombra. "Lamentavelmente, as ideias que impuseram a atual política econômica continuam intactas. (...) No momento, não existem indícios de vida inteligente na Europa", escreve José Carlos Díez, professor de economia.
Fica claro que a presidente Dilma Rousseff não está sozinha ao criticar a absoluta hegemonia de políticas de austeridade. Mas seria importante que a presidente não comprasse alegremente a lenda de que a desigualdade na distribuição da renda no Brasil está diminuindo.
Já até cansei de demonstrar o contrário, mas, agora, até uma revista ultragovernista como "Carta Capital" publica entrevista de Fernando Nogueira da Costa (ex-Caixa, hoje Unicamp) em que ele diz o que tenho dito há anos: caiu, sim, a desigualdade entre salários, mas não entre a renda do capital e do trabalho. "Fala-se na diminuição da desigualdade, mas ela ocorre em razão da renda do trabalho, não da riqueza financeira", diz.
E acrescenta: "Passa a impressão de que vivemos uma desconcentração da riqueza, quando não é verdade".
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