FOLHA DE SP - 27/10
Mais precisamente, um velório-show, o de Michael Jackson, Los Angeles, 2009. Na cerimônia, em um ginásio de basquete para 20 mil pessoas, Berry Gordy, fundador da Motown, relembrou o primeiro teste de Michael na gravadora. O artista escolheu uma canção de dor: "Who's Loving You", de Smokey Robinson.
Gordy, malandro velho de Detroit, descreveu em seu discurso: "Ele cantou com a tristeza e a paixão de um homem que tinha vivido uma vida inteira de 'blues' e desilusões amorosas". Na época, Michael era uma criança de dez anos.
Impossível não lembrar disso ao ouvir "Coexist", o novo álbum (nem tão novo assim, dirão os indies mais aguerridos) da banda londrina xx. É tudo adulto e profundo demais para ser criado por gente tão jovem.
Apesar de fazer rock, gênero de origem estridente, o xx habita uma dimensão de silêncios. Aqui e ali, materializam-se pontilhismos de guitarra, uma linha simples de baixo, teclados minimalistas, vocais que são quase sussurros. Mas é nos interstícios, nos momentos em que nada parece acontecer, que a música do xx ganha plenitude.
As faces visíveis do grupo são os vocalistas Romy Madley Croft (menina, provavelmente de 23 anos) e Oliver Sim (menino, acredita-se que de 23 também). Acompanha-os um "whiz kid'' das programações e batidas, Jamie Smith, ou Jamie xx, mesma faixa etária.
Romy e Oliver, tão moços, são responsáveis por versos de uma delicadeza rara. Como na faixa "Unchained", minha favorita: "Nós éramos muito mais próximos / Nós chegávamos muito mais perto / Você não sente saudades?".
"Angels", primeira canção do álbum, traz um achado digno de Orestes Barbosa, o poeta de "Chão de Estrelas": "Você anda pela sala / Como se respirar fosse fácil" (em inglês soa tão mais bonito: "You walk through the room / Like breathing was easy").
Em "Missing", outra faixa linda, os vocais são inicialmente conduzidos por Oliver. A voz de Romy aparece distante, sons que não chegam a formar palavras. Jamie xx dispara uma batida irregular, como um coração em fluxo caótico. A letra diz: "Meu coração está batendo de um modo diferente / Fiquei tanto tempo longe / Não me sinto mais o mesmo".
No meio de "Missing", uma parada brusca. Nada menos que quatro segundos de um silêncioaflitivo: 1, 2, 3, 4... A canção finalmente recomeça, e os papéis se invertem. Agora é Romy quem canta: "Você ainda acredita / Em mim e você?". A voz "de profundis" passa a ser a de Oliver Sim, um grito terminal, um estertor.
"Coexist" é o segundo álbum do xx. O primeiro saiu em 2009. Ao contrário do que sempre acontece no rock e no pop, "Coexist" é mais simples e seco que seu antecessor. Não tem orquestras (reais ou de sintetizador), nem produtor famoso. Dispensa os arranjos suntuosos. Rejeita o exibicionismo.
O grupo manteve um alto nível de controle sobre sua arte. Mesmo depois do sucesso do primeiro disco, dos festivais um em seguida do outro, das turnês intermináveis, e de uma crise interna que levou à expulsão da segunda guitarrista, Baria Qureshi, em 2010. Em meio ao tumulto, shows foram cancelados por "exaustão".
Em uma conta no Twitter, ainda ativa, Baria se diz apunhalada pelas costas, e relata ter sido demitida por mensagem de texto (twitter.com/bariaq). Um processo relativo a direitos autorais, Baria contra o xx, corre na Justiça inglesa.
Em um quadro assim, imagina-se que não foram poucas as pressões em torno deste segundo disco do xx. A banda conseguiu superá-las. Seu universo é o do menos que significa mais, dos corações em chamas, da desesperança urbana, de sentimentos expostos com um mínimo de sons e palavras.
Penso em outros álbuns igualmente adultos, que se comparem em densidade a "Coexist". "Mezzanine", do Massive Attack (1998), e "Knowle West Boy", de Tricky (2008), são candidatos. Mas estes vieram de artistas maduros no auge da forma.
"Coexist", não: foi feito por meninos. Em "Our Song", eles dizem: "Tudo o que eu fiz / Você fez também". É verdade. Parceria perfeita.
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