Os brasileiros invadem Las Vegas na crise; excursões em nove parcelas têm jogatina, gelo do Titanic em museu, Celine Dion e sete shows do Cirque du Soleil
A aposentada Ana Maria Ferreira dos Santos, 70, pagou em nove prestações o pacote de R$ 4.000 para visitar Las Vegas, nos EUA. Com direito a uma visita de um dia ao Grand Canyon e um final de semana na Califórnia, é na cidade dos cassinos que ela vai passar mais tempo.
"Os hotéis são maravilhosos e posso gastar US$ 5 (R$ 10) em caça-níqueis para ficar um tempão jogando", explica ao repórter Raul Juste Lores. Ela viajou com outras seis amigas de Peruíbe, litoral sul de SP. É sua segunda visita a Vegas. Nessa, vai aproveitar para se encontrar com uma amiga de Minnesota que conhece só pelo Orkut.
Até 2010, os brasileiros não estavam nem entre os dez principais visitantes estrangeiros de Las Vegas. Eram menos de 50 mil por ano. Em 2011, foi o sexto maior grupo (133 mil). Las Vegas já é o quarto destino preferido de brasileiros nos EUA, depois de Miami, Orlando e Nova York. E o único desses sem voo direto.
"Estou tremendo até agora de emoção", ri a auditora federal Camila Bella, que assistiu na noite anterior ao show de Celine Dion no Caesars Vegas. Ela pagou US$ 250 (R$ 500) para se sentar perto do palco. Com o marido, o técnico da Petrobras Talles Faria, ela foi a quatro shows do Cirque du Soleil (há sete em cartaz permanentemente, em diferentes hotéis). "É entretenimento para adultos", diz Faria. "Vale voltar a cada dois anos."
A crise econômica mundial iniciada em 2008 afetou duramente o turismo em Las Vegas. A renda dos cassinos da cidade caiu ou ficou estagnada, e o empresariado local passou a promover mais o destino em países emergentes como Brasil e China.
Celebridades brasileiras, como Ana Maria Braga e Luciano Huck, propagandearam o destino. A apresentadora da TV Globo se vestiu de noiva para uma reportagem sobre casamentos na cidade, enquanto Huck se fantasiou de Elvis Presley. A estratégia deu resultado.
Os irmãos mineiros Flávia e Antonio Eduardo Pinto Coelho visitam a cidade pela primeira vez, em um pacote que incluiu também a Califórnia. Pagaram cada um US$ 460 (R$ 920) para viajar de helicóptero de Las Vegas até o Grand Canyon. Uma limusine foi pegá-los no hotel. "Viemos pelas compras e pelos shows. Não vamos jogar nada", diz Antonio, que é empresário. "Todas as pessoas comparam com Dubai. Acho aqui melhor."
Las Vegas também fatura com a vizinhança mais reprimida. É um dos raros lugares dos Estados Unidos onde pessoas podem andar com bebidas alcoólicas na mão e na rua sem precisar escondê-las com um pacote de papel ou saco plástico.
O fumo é liberado dentro de todos os cassinos. Vans circulam pela cidade com anúncios oferecendo "delivery" de garotas "direto no seu quarto". A cidade é considerada o maior polo de despedidas de solteiro e solteira do país.
"Nunca vi tanto brasileiro na cidade quanto no dia da última luta do Anderson Silva, em julho", recorda o agente de viagens Sandro de Paulo, há três anos em Las Vegas, que faz o turismo receptivo da empresa All Tour para grandes agências como CVC.
Ele diz que o novo turista brasileiro por lá tem entre 40 e 60 anos de idade, joga pouco ou quase ignora os cassinos, compra eletrônicos Apple e produtos esportivos em outlets e não perde Celine Dion e Cirque du Soleil. "Não interessa o valor do pacote, Celine e o Cirque são adorados por todas as classes."
Entre os dez países que mandam mais turistas a Las Vegas, os do Brasil são os que mais tempo passam na cidade -sete dias, em média. Gastam US$ 3.360 (R$ 6.720). Para 30% deles, é a primeira viagem internacional.
"O que o brasileiro mais quer é gente que ajude no aeroporto e no hotel que fale português", diz De Paulo. A rede de churrascarias Fogo de Chão, que abriu há seis meses uma filial em Las Vegas, levou o conceito à risca. Quase todos os garçons são brasileiros e até um mexicano fala português. O rodízio sai por US$ 26,50 (R$ 53, 50% ou R$ 46 a menos que em SP, onde custa R$ 99).
A imaginação para criar atrações é veloz. Mal terminada a Olimpíada de Londres, hotéis já anunciavam apresentações especiais com medalhistas americanos. Baladas nas maiores discotecas têm como anfitriões astros como Enrique Iglesias. Na semana passada, enquanto Jennifer Lopez promovia uma festa, o príncipe britânico Harry fazia farra noturna na piscina com amigos.
A arte do "name dropping", o vício de usar nomes de famosos para impressionar, é altamente explorada na cidade. Os maiores hotéis usam as grifes de chefs conhecidos como chamariz para seus restaurantes. Gordon Ramsay, famoso por um reality show, empresta seu nome a um restaurante do Paris Vegas, hotel famoso por sua réplica da Torre Eiffel na entrada. Dezenas de turistas franceses se hospedam lá, indiferentes ao pastiche da arquitetura francesa do lugar.
Até Claude Monet é comercializado no museu instalado no hotel Bellaggio, com algumas poucas obras menores, emprestadas pelo museu de Belas Artes de Boston. Há exposições mais escancaradamente caça-níqueis, como a das relíquias do Titanic. Por um ingresso de US$ 32 (R$ 64), o visitante pode ver porcelanas, roupas e móveis, que os organizadores juram que estavam no navio. Podem também tocar em um bloco de gelo com a temperatura e a espessura do iceberg que afundou o transatlântico, em 1912.
Em Vegas, turismo é consumo. O flanar pela cidade praticamente não existe. Há apenas duas grandes atrações gratuitas -a dança das fontes do hotel Bellaggio, onde as águas podem alcançar uma altura de 40 metros, ao som de Celine Dion, e o calçadão da rua Fremont, no centro velho de Vegas, que parece uma versão "high tech" do centrão paulistano. Ao lado de cassinos e lojinhas de 1,99, o maior telão LED do mundo serve como cobertura do calçadão. Nele são projetados shows de Bon Jovi e Queen -este é o "ano do rock em Las Vegas".
A maior atração da Fremont, no entanto, é paga: um cabo por onde os turistas são içados e vão de uma ponta a outra do calçadão, a 10 metros de altura, sob o telão iluminado. É uma espécie de tirolesa com muito neon. O programa de 30 segundos custa US$ 20 (R$ 40).
O objetivo dos principais hotéis da cidade é que o hóspede jamais tenha que sair dali e gaste a cada minuto da estadia. Além de vários cassinos e restaurantes, eles abrigam centros de convenções, diversos teatros e discotecas. Em média, têm de 3.000 a 4.000 quartos. No total, são 150 mil em toda a cidade (o Rio tem 28 mil). Não é tão difícil convencer os hóspedes a não se aventurar na rua. No verão, a temperatura média fica acima dos 40º C.
Sustentabilidade é palavra desconhecida. Borrifadores eletrônicos tentam dar umidade na porta dos hotéis para que, entre o percurso do táxi ao lobby, os hóspedes não se encharquem de suor. Ar condicionado e luz artificial ficam ligados o dia inteiro. Os cassinos jamais possuem janelas e vários têm um céu azul e nuvenzinhas brancas pintadas no teto. Para eles, é melhor que os jogadores percam qualquer noção do tempo -e da realidade.
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