O GLOBO - 26/09
Sim, o capital impulsiona as grandes obras hidrelétricas em construção na bacia amazônica. O capital também impulsiona a invenção, fabricação e venda de computadores, aparelhos de TV, smartphones, ônibus, caminhões, trens, automóveis, geladeiras e os alimentos e bebidas que enchem as geladeiras, remédios, também as novelas, os jogos de futebol, filmes ou livros que preenchem os nossos tempos livres. "Acusar" o capital pelas grandes obras hidrelétricas na Amazônia é mera platitude. A questão a discutir é a de se precisamos delas ou não para continuarmos a viver na civilização em que vivemos.
A expressão "capital", nesse significado que se confunde com "empresa" e, daí, com um certo tipo de pressão política "espúria", identifica um discurso que se pretende de "esquerda". Assumindo esse discurso, é certo que existem empresas poderosas interessadas na construção de Belo Monte.
Com os recursos auferidos, gerarão bons lucros para os seus milionários acionistas. Mas boa parte desses recursos também pagará salários a engenheiros, outros profissionais de nível superior ou médio, milhares de "peões" de obra, milhões de outros trabalhadores em empresas direta ou indiretamente fornecedoras. Esses salários comprarão geladeiras, televisores, alimentos etc., etc., etc. Esses salários, mal ou bem, pagarão estudos de crianças e jovens, e cuidados com a saúde. Esses salários, tanto o do engenheiro quanto o do "peão", também movimentarão contas de FGTS, cadernetas de poupança, contribuições para o INSS, além, claro, de alimentar o voraz "leão". Isto em Altamira, Belém, Imperatriz, São Luís e tantas outras cidades do Norte e Nordeste, mas também, devido a seus efeitos multiplicadores, no Rio, em São Paulo, em todo o país. Belo Monte pode interessar ao capital, mas também muito interessa ao trabalho.
Obras como essas modificam tudo no território à sua volta. É verdade. Atraem novas gentes, num movimento aliás inerente à espécie humana, desde quando ela se originou em um ponto qualquer da África subsahariana. No Brasil mesmo, para não remontarmos a 15 mil anos atrás, nossa história recente seria incompreensível sem as migrações de nordestinos para o Centro-Sul (no meio deles veio um certo Lula da Silva). Os brasileiros agora estão indo para o Norte, um dos nossos últimos territórios ainda quase nada modificados, levados pelo capital que, para onde vai, não sabe viver sem as suas brigas com o trabalho.
Como sempre aconteceu ao longo de toda a história da humanidade, diante de movimentos assim, as populações autóctones ou se adaptam, ou perecem. Sobrevivem aquelas que logram incorporar novos hábitos, e nisto modificando os antigos. Aliás, este tem sido o caminho pelo qual a humanidade, ao não extinguir, logra manter, enriquecer e aprimorar sua diversidade. Que o diga a cultura brasileira, cuja rica variedade resultou de sua mestiça e sincrética herança ameríndia, europeia e africana.
Esta sempre foi a visão da esquerda, aquela mesma esquerda da crítica ao capital, ao menos desde Saint Simon e Marx. De uns tempos para cá, no entanto, quer-se negar esse projeto de progresso civilizatório. Parece novidade. Pós-moderno. Não é.
Não passa de reciclagem da velha utopia primitivista de Rousseau. Mas que, como discurso, interessa, e muito, a outros setores do... capital. Estes que bancam as ONGs, logo também pagam os salários que compram as geladeiras, as TVs de LED, as roupas de shopping, os computadores, os automóveis particulares e o permanente turismo internacional dos seus profissionalizados militantes. Não esquecendo as suas contas de luz.
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