FOLHA DE SP - 21/07
A portaria da AGU confere segurança jurídica sobre o tema demarcação e gestão das terras indígenas
A questão da demarcação das terras indígenas no Brasil é um desses temas pouco conhecidos e muito comentados. Consolidou-se no imaginário urbano a ideia de que os índios vivem em condições abjetas, possuem poucas terras e estão entregues à própria sorte. Equívocos em série, disseminados propositalmente.
Deles deriva a argumentação de que é preciso rever e ampliar antigas demarcações, o que decorreria da escassez do território que lhes está destinado. Os números, porém, contam outra história. Vejamos.
Todas as cidades brasileiras, as estradas e a infraestrutura que as interligam somam 11% do território nacional. A população propriamente dita -quase 200 milhões de pessoas- vive em 2% do território. As terras indígenas, que abrigam cerca de 600 mil índios, somam 12,6% do território nacional.
Terra, portanto, não lhes falta. Mas há mais.
Há dois órgãos federais voltados para a questão indígena -Fundação Nacional do Índio (Funai) e Fundação Nacional de Saúde (Funasa)-, além de milhares de ONGs e da própria saúde pública, a que também têm acesso. A maioria dos cidadãos brasileiros está longe de dispor de tal estrutura.
Isso não significa que os índios não careçam de atenções especiais, dada a vulnerabilidade de seu habitat, frequentemente invadido por gente alheia a seu meio. Mas, mesmo nesses casos, é preciso não perder de vista o senso das proporções.
A demarcação e a gestão de suas terras têm sido uma das questões mais controvertidas -e, historicamente, fonte de insegurança jurídica, pela ausência de regras nítidas.
O episódio da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, submetida em março de 2009 ao Supremo Tribunal Federal, acabou por, finalmente, estabelecer um paradigma.
Ao julgar a controvérsia, o STF, diante da escassez de parâmetros, definiu, em acórdão, 19 condicionantes para a demarcação e a gestão dessas terras, que acabam de ser consignadas na portaria nº 303, da Advocacia-Geral da União.
A partir de agora, o tema já não será uma abstração, gerido por discursos demagógicos de ONGs, que pretendem colocar o Brasil no banco dos réus também nessa questão.
Ao ser publicada, a portaria da AGU gerou reações. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), por exemplo, afirmou que a existência de embargos de declaração ao acórdão do STF torna a portaria precipitada, já que a própria Corte, ao julgá-los, pode, em tese, mudar algumas de suas determinações.
É possível, mas não provável, já que o STF não inventou nada. Baseou-se na Constituição e na legislação da política indigenista, delas extraindo o que já estava em vigor no ordenamento jurídico brasileiro. Garantiu a imprescritibilidade das terras indígenas, mas estabeleceu os critérios para demarcações em curso.
As 19 condicionantes resultaram de amplo e consistente debate, político e jurídico, que a AGU, a seguir, resumiu em parecer, que embasou a presente portaria.
Ao estender às demarcações em curso as condicionantes aplicadas à Raposa Serra do Sol, a portaria regulamenta esse processo, dá-lhe um critério palpável, conferindo-lhe segurança jurídica.
Prova de que era necessária é o fato de que, mesmo estando há três anos em pleno vigor o acórdão do STF, órgãos do Poder Público federal insistiam em ignorá-lo, sob o argumento da pendência dos embargos de declaração.
É um argumento improcedente, já que a AGU prescinde do Judiciário para fixar a interpretação da legislação no âmbito da administração pública -como, com essa portaria, acaba de fazê-lo.
Embora represente um avanço, a portaria pode -e deve- ser aperfeiçoada. Se, por um lado, impede a ampliação de terra indígena já demarcada, ainda não define claramente "os casos de vício insanável ou de nulidade absoluta". Nada, no entanto, que não se possa corrigir.
Com essa iniciativa, a que se somam a atualização do Código Florestal e a adoção do seguro agrícola como uma das prioridades do novo Plano Safra, o mundo rural alcança um novo patamar de segurança jurídica, em benefício de todos os brasileiros.
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