sábado, julho 14, 2012

As autoridades que nos constrangem - LEONARDO CAVALCANTI


CORREIO BRAZILIENSE 14/07

Quando a gente pensa que as coisas vão bem, os fatos nos traem. Refiro-me ao episódio envolvendo uma desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT2), de São Paulo, a filha dela e os policiais responsáveis por uma blitz da lei seca na capital paulista. Nada mais prosaico, todo o dia temos alguém a se recusar fazer o teste da embriaguez. Nada mais bizarro, a surrada máxima “sabe com quem você está falando” mostra-se de uma infelicidade atual. E voltamos a lembrar como autoridades brasileiras ainda se valem de tais expedientes para reforçar o poder. E nos constranger.

Aos fatos, pois. Na noite da última quarta, a desembargadora Iara Rodrigues de Castro e a advogada Roberta Sanches de Castro — que dirigia um Chery — foram paradas pela Polícia Militar. Depois de Roberta se recusar a fazer o teste do bafômetro, a confusão se iniciou. Na versão policial, as mulheres foram agressivas. Na versão das mulheres, os policiais foram truculentos. A desembargadora teria perguntado se os responsáveis pela blitz “sabiam com quem estavam falando” e Roberta supostamente desferiu uns tapas nos soldados. A magistrada diz ter sido vítima da truculência policial e de desaforos.

Um vídeo amador, gravado com uma câmara de telefone celular, chegou a ser divulgado. Mas pouco se consegue ver o que ocorreu na prática. As cenas mostram as duas mulheres um tanto desengonçadas do alto dos saltos, esbravejando algo incompreensível. E aqui voltamos aos relatos parciais dos envolvidos no episódio. Segundo a desembargadora, ao serem paradas na blitz, os policiais pediram para revistar o carro. Mãe e filha teriam informado que seria preciso um mandado judicial para tal coisa. Depois, Roberta se recusou a fazer o teste do bafômetro, uma “arbitrariedade”, segundo ela.

Disse me disse

Os soldados envolvidos no entrevero afirmam que Roberta apresentava sinais de embriaguez, mostrou-se agressiva desde o primeiro momento e chegou a dizer que a operação era “uma palhaçada”. Iara, por sua vez, num autoelogio, disse ser “a maior desembargadora do país”. Depois, as duas mandaram os PMs calarem a boca. As mulheres garantem que quem as mandou calarem a boca foram os policiais. E que apenas se apresentaram — “sabem com quem estão falando” — depois dos gritos dos soldados e de terem sido empurradas. A partir daqui chega, de mansinho, a nossa velha infelicidade.

O disse me disse entre a desembargadora e os policiais ficaria nisso, numa guerra de versões, se não fosse a entrevista dada pela mulher logo depois da confusão. Para as câmeras de televisão, Iara revelou-se: “Chegou um policialzinho, que eu vim aqui (na corregedoria da PM) para denunciá-lo, me empurrou, me agrediu (sic). Eles desconhecem o que é um desembargador, o que é senso de hierarquia”. Bem, se a dona Iara não foi clara o suficiente com os policiais sobre o que realmente pensa da vida, na entrevista aos repórteres, ela foi direta. A nobre magistrada se acha diferenciada.

Para ela, segundo as próprias palavras, existe uma hierarquia, que deve ser seguida, não apenas nos tribunais, mas também na rua, no espaço público. Em qualquer circunstância, ela é melhor. Os outros podem ser tratados no diminutivo, para deixar exposto o papel do interlocutor. Tal análise, como se sabe, não é nova. Ainda na década de 1970, o antropólogo brasileiro Roberto DaMatta já a detalhava: os que pronunciam a frase “você sabe com quem está falando” colocam-se como titulares do direito, fortes na sociedade. Os que a ouvem são meros coadjuvantes, indivíduos que apenas habitam o cenário.

Alguns equívocos parecem eternos. E a gente pensava que as coisas iam tão bem por aqui.

Outra coisa

Sobre a coluna de sábado passado, Quem é contra a transparência, o leitor Roldão Simas Filho pondera que uma afirmação deve ser melhor explicada. Trata-se do momento em que trato da possibilidade da não divulgação dos salários dos funcionários das estatais, como a Petrobras. Ele alerta que os empregados dessas empresas são celetistas, “não são pagos com verbas oriundas dos impostos. As estatais — como as mencionadas — são sociedades abertas, de capital aberto (…), que prestam contas aos seus acionistas, inclusive o governo, sócio majoritário, com seus balanços apreciados pelas assembléias dos acionistas. Seus recursos vêm de suas atividades econômicas próprias”.

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