segunda-feira, junho 18, 2012

Erro com erro - J.R. GUZZO

REVISTA VEJA


Vai ficando cada vez mais distante, no Brasil, a época em que existia uma fronteira clara en­tre o bem e o mal — o certo estava de um lado e o erro estava de outro, e por aí se cos­tumava parar. Hoje, estranhamente, a fronteira mais comum nos conflitos políticos é entre o mal e o mal. Poucas histórias, entre tantas que acontecem na vida pública atual, demonstram tal mudança tão bem quanto essa extraordinária conversa entre o ex- presidente Luiz Inácio da Silva e o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, no escritó­rio do hoje advogado Nelson Jobim, ex-ministro de uma porção de coisas e amigo de ambos. Como se sabe, Mendes revelou a VEJA, e depois confirmou em várias entrevistas, que foi pressionado por Lula, durante o encontro, a favorecer os réus nesse malfa­dado mensalão que tanto desmoralizou o seu gover­no e está perto, enfim, de ser julgado pelo STF. Lu­la, é claro, negou tudo. O caso entrou em banho- maria e já está a caminho do congelador, mas deixa um retrato perfeito de situação em que não há nada que preste. è a briga do erro com o erro.

Em primeiro lugar, causa espanto, ou deveria causar, a conduta do ministro Gilmar Mendes — por aceitar, como se fosse a coisa mais normal do mundo, uma reunião absolutamente imprópria com o ex-presidente. Ele nunca poderia ter tido uma conversa em particular como a que teve; em sua condição de ministro do STF, que se prepara para um julgamento no qual Lula tem interesses diretos e importantes, Mendes está impedido de qualquer contato pessoal com o ex-presidente, ou outras pessoas de alguma forma ligadas ao caso. Afinal, ele será um dos julgadores do mensalão, e por um dever rudimentar de imparcialidade não tem nada a tratar com acusados ou com acusado­res. Conversar sobre o que com Lula, e para quê? O ministro talvez não se lembre, mas já houve um tempo neste país em que juízes, ou pelo menos juízes de verdade, não aceitavam nenhum tipo de conversa particular sobre qualquer caso em apre­ciação por eles próprios ou peloJudiciário em ge­ral — com ninguém, e em nenhuma circunstância.

Se alguém quisesse falar com o juiz, que fosse ao fórum e, ali, na presença do escrivão ou de outros funcionários do juizado, dissesse tudo o que tinha a dizer. Mas a Justiça brasileira, como tantas ou­tras coisas, foi remasterizada durante os últimos anos; atitudes de simples decência por parte de um magistrado são consideradas, hoje, uma anomalia própria da idade da pedra. O ministro Mendes, é óbvio, tem de atender um ex-presidente da Repú­blica que deseja falar com ele. Mas por que não fez isso em seu gabinete no Supremo, diante de testemunhas neutras, em vez de ter a tal conversa no escritório de um amigo? É um desastre — mas o mundo político não viu nada de estranho na his­tória, nesta época em que juízes, advogados de renome e até réus, quando são importantes ou ri­cos, convivem alegremente uns com os outros em churrascos, festas de casamento e a bordo de jatinhos particulares.

Em segundo lugar, deveria causar ainda mais espanto que o ex-presidente da República participe de um encontro a portas fechadas com um dos onze magistrados que vão julgar o mensalão. Se Mendes não tinha nada de conversar com Lula, Lula tam­bém não tinha nada de conversar com Mendes — sobretudo levando em conta as coisas para lá de esquisitas que disse, segundo garante o ministro. O momento pior dessa comédia, como de costume, foi a indi­ferença do ex-presidente dian­te do seu dever de dar alguma explicação coerente para o ca­so. Disse que estava “indigna­do”, e precisava se precaver contra “uma minoria que não gosta de mim”. Mas o problema não é saber quanta gente gosta e quanta gente não gosta dele; é saber o que foi fazer nessa conversa com o ministro e, principalmente, o que disse a ele. Mendes falou que houve pressão e algo muito parecido com chantagem. Como é que fica? Quanto a Nelson Jobim, nenhuma esperança de lu­zes — pelo pouco que disse, parecia uma dessas testemunhas que viram um homem nem alto nem baixo, que também poderia ser uma mulher, perto de um carro vermelho ou azul, que talvez fosse uma moto amarela.

Os homens públicos do Brasil, já há bom tem­po, desfrutam de uma espécie de indulgência plená­ria — aquela que não apaga o pecado, mas elimina as penas devidas pelo pecador, e que os papas de antigamente vendiam para fazer caixa. Todo mundo pode agir como bem entende e não acontece nada a ninguém. É o ambiente ideal para conversas que nunca deveriam ocorrer.

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