O Estado de S.Paulo - 13/05/12
Só o tempo dirá se o sucessor de Sarkozy é um soberanista disposto a enfrentar o fundamentalismo econômico da nova Dama de Ferro
Na manhã da última quinta-feira, a tocha olímpica foi acesa, na Grécia, para em seguida iniciar uma viagem de 13 mil km até Londres, onde as próximas Olimpíadas terão início daqui a 75 dias. "Do berço dos antigos Jogos Olímpicos para o país que nos deu o fairplay", exaltou o presidente do Comitê Olímpico Internacional, Jacques Rogge. Alguém salientou como inapropriada a associação dos ingleses ao fairplay, que há muito teria sido desmoralizado na velha Albion pelos hooligans e pelo atacante Ashley Young, do Manchester United.
A tocha sempre sai da Grécia, mas seu percurso, desta vez, revelou-se oportunamente carregado de simbolismo: do país da zona do euro que mais sofre com a crise econômica em curso para o país que a teria antecipado. Do templo de Hera, a ciumenta e vingativa deusa que amadrinhou as Olimpíadas, para a ilha de Margaret Thatcher, a inflexível Dama de Ferro que destampou para os europeus a caixa de pandora do neocapitalismo selvagem na década de 80.
Thatcher fez de um aforismo ("Não existe a sociedade, existem apenas indivíduos e famílias") um dogma especialmente perigoso, e de uma alemã sua sucessora espiritual. Angela Merkel, a nova Dama de Ferro do continente, reciclou uma prosápia de Luís XIV, não menos inquietante: "O governo econômico somos nós". O governo da Europa, bem entendido. Se fosse só o da Alemanha, nada a objetar.
A farfância foi ouvida pela primeira vez depois que o kaiser do Parlamento alemão Volker Kauder voltou de uma viagem à Espanha gabando-se de que "hoje a Europa fala alemão". Nem acrescentar "falar é fácil" eu posso, pois a língua alemã pode ser tudo: feia, agressiva, autoritária-mas fácil não é.
No lugar do Consenso de Washington entrou o Consenso de Berlim. O império do privado sobre o bem público, o thatcherismo com chucrute, uma Blitzkrieg contra a maior conquista europeia do pós-guerra, o estado de bem-estar social. "Nenhum país pode saldar suas dívidas com seu crescimento econômico asfixiado", ponderou em editorial o New York Times, após qualificar de má a gestão da crise pela Alemanha. Pois é, até o Times.
A pujança teutônica não é para qualquer bico, acima de tudo porque a Alemanha livrou-se da crise na década passada acumulando um alto superávit comercial e subsidiando o mercado de trabalho. Como não se fez uso de medidas econômicas rigorosamente ortodoxas, Frau Merkel me parece moralmente impedida de transformar em hino ou cântico de guerra seu atual mantra: "Sparmassnahmen über alles". Por que fazer da austeridade à outrance uma bandeira, se cortar gastos numa economia deprimida só contribui para aprofundar a depressão?
"A Europa só funciona quando a Alemanha não se impõe", alertou o ex-ministro de Merkel Sigmar Gabriel. Nem precisou aludir às duas grandes guerras do século passado. Helmut Kohl, líder histórico da reunificação alemã e padrinho político da atual chanceler, lamentou dia desses que a sua Europa, "equilibrada e consensual", esteja sendo destruída. "Para assegurar a estabilidade financeira e fiscal europeia em função dos interesses alemães", precisou o diplomata espanhol Menéndez del Valle. Dos interesses da Alemanha e do sistema financeiro.
O respeitado sociólogo Ulrich Beck, professor em Munique e na London School of Economics, já se manifestou contra a "Europa de Bruxelas" (sede da Comissão da União Europeia) e a emergente "Europa alemã" (um "monstro político"), em favor de uma nova Europa, francamente "europeia", refundada de baixo para cima, alternativa progressista que em alguns pontos se aproxima da "economia holística", pós-keynesiana, proposta pelo Nobel Joseph Stiglitz - mais solidária, mais mediterrânea, mais humanística, com a dose justa de rigor fiscal e responsabilidade.
Até porque veem a crise europeia como "o canário na mina da globalização" e um espelho da recessão econômica nos Estados Unidos, alguns acadêmicos e economistas americanos compareceram, no início da semana, a uma conferência em Florença, na Itália, sobre os caminhos a serem trilhados pela União Europeia. Falou-se em disciplina orçamentária, reformas estruturais que incentivem o crescimento, restauração das antigas moedas europeias, resistência ao protecionismo, etc. "Isso é o melhor que vocês têm a propor?", cobrou Barry Eichengreen, professor de economia na Universidade de Berkeley, na Califórnia.
Eichengreen criticou a estreiteza mental dos políticos ("Só pensam em soluções a longo prazo, mesmo quando ações imediatas se mostram necessárias") e defendeu um Plano Marshall para a Grécia. O historiador de Princeton Harold James sugeriu que o melhor que os países mais a perigo têm a fazer não é deixar a UE, mas, a exemplo do que fazia Florença nos seus áureos tempos de cidade-estado, manter duas moedas, uma para uso doméstico (a que valia antes; no caso da Grécia, o dracma) e o euro para transações externas. Tudo em nome de uma unificação europeia indissolúvel e eficaz.
Com ou sem moeda única, países como Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha não têm chance de sobreviver se tutelados a mão de ferro pelo "novo sistema de governança europeu", que até hoje não mostrou serviço. Ademais, como salientou Diana Johnstone, "não há como conciliar eurorricos alemães e europobres gregos".
Johnstone não foi a única a receber sem entusiasmo a eleição de François Hollande. "A França não tem um presidente real", escreveu na revista Counterpunch, mas um preposto da Comissão da União Europeia e da Sparmassnahmen alemã, como o são todos os presidentes e chanceleres do continente. Só o tempo dirá se o sucessor de Sarkozy é um soberanista realmente disposto a enfrentar o fundamentalismo econômico da nova Dama de Ferro. A era Merkollande está apenas começando.
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