O ESTADÃO - 13/05/12
Falam da cultura científica e da cultura humanística como se falassem de duas raças diferentes. Os que defendem que a divisão entre as duas culturas não é genética sustentam que não dá para saber, pelo comportamento da criança até os seus cinco anos, se ela será de uma cultura ou de outra. Se o garoto gosta de abrir a barriga do ursinho, tanto pode significar que ele vai ser um cirurgião ou um médico legista quanto que vai ser filósofo e estripador amador.
O meio é que determinaria a vocação e o destino. Condicionado pelo meio, o filho de um médico teria naturalmente mais chances de ser um médico também enquanto o filho de um filósofo estripador teria muito mais chances de acabar na cadeia, ou escrever um livro de memórias sensacional. Já outros sustentam que a genética é tudo e que no espermatozoide que fecunda o óvulo já está o contador ou o poeta, o advogado ou o engenheiro, o ator ou o dentista.
E há os que garantem que o espermatozoide não decide nada. Pode chegar no óvulo com os planos que quiser, cheio de ânimo e moral afinal, derrotou milhões de outros espermatozoides na corrida para ser o primeiro, é natural que se sinta um vencedor e capaz de tudo pois quem decide mesmo é o óvulo.
– Presidente da República coisa nenhuma. Contrabaixista e numismata.
– Mas, mas... – tenta protestar o espermatozoide.
– Quieto. Lembre-se que você é o intruso aqui. Eu estou em casa. E na minha casa mando eu!
Genética x cultura, hereditariedade x influência do meio – é uma discussão que nunca se decide. Por que certas pessoas “dão” para certas coisas e outras não? O fato é que há as que querem ser dentista desde pequenas e as que não apenas não concebem como alguém possa ter uma vocação assim como precisam se controlar para não morder seu dedo, revoltadas. Seja por influência do meio ou por compulsão genética, o fato é que a partir de uma certa idade nós todos sabemos se queremos abrir barrigas ou não.
A divisão ciência/humanismo se projeta na maneira como as pessoas, hoje, encaram o computador. Resiste-se ao computador, e a toda a cultura cibernética, como uma forma de ser fiel ao livro e à palavra impressa. Mas é falso que o computador substituirá o papel. Ao contrário do que se pensava há alguns anos, o computador não salvará as florestas. Aumentou o uso do papel em todo o mundo, e não apenas porque a cada novidade eletrônica lançada no mercado corresponde um manual de instrução, sem falar numa embalagem de papelão.
O computador estimula as pessoas a imprimirem coisas. Como hoje qualquer um pode ser editor, paginador e ilustrador sem largar o mouse, a tentação de passar sua obra para o papel é quase irresistível. E nada dá uma impressão de permanência como a impressão, ainda menos uma tela ondulante que pode desaparecer com o mero toque numa tecla errada. Mesmo forrando a proverbial gaiola do papagaio um papel impresso tem mais nobreza e perenidade do que qualquer cristal líquido.
Mas desconfio que o que salvará o livro será o supérfluo, o que não tem nada a ver com conteúdo ou conveniência. Até que lancem disquetes com o cheiro sintetizado, nada substituirá o cheiro de papel e tinta nas suas duas categorias inigualáveis, livro novo e livro velho.
E nenhuma coleção de disquetes ornamentará uma sala com o calor e a dignidade de uma estante de livros. A tudo que falta ao admirável mundo da informática, da cibernética, do virtual e do instantâneo acrescente-se isso: falta lombada. No fim o livro deverá sua sobrevida à decoração de interiores.
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