sábado, fevereiro 25, 2012

TV or not TV - MARCELO RUBENS PAIVA


O Estado de S.Paulo - 25/02/12


Os camarins de uma emissora são a fórmula para entendê-la. Bem, por um tempo, foram. Maquiavam apresentadores. Fonoaudiólogos treinavam vozes. Penteados e figurinos os colocavam em sintonia com a imagem do equilíbrio. Evitavam cores fortes e camisas listradas, que atrapalham a transmissão.

Preparavam o cenário para transformar estúdio em cozinha, sala, mesa de debates. A luz estourada evitava sombras. Ainda há uma obsessão de diretores e iluminadores pela destruição da sombra e iluminação do nada, como se no mundo ela não existisse ou atrapalhasse a harmonia visual dos ambientes.

Segunda obsessão era pelo tripé, como um quadro de museu, para não atrapalhar o que era dito. Era grande a dificuldade de convencer técnicos a deixarem o tripé na viatura. Nos anos 80, com a portabilidade dos equipamentos, a era do tripé ficou para trás.

Na produtora Olhar Eletrônico, atual O2, o câmera Fernando Meirelles era até o personagem Valdeci, do repórter Ernesto Varela (Marcelo Tas). Interagiam. O objeto eletrônico, que no fundo era o espectador, emitia opiniões, chacoalhando "sim", "não", "talvez".

Havia a missão: descobrir uma nova linguagem para TV, torná-la mais humana, informal, próxima do telespectador, que não tinha o topete de Sérgio Chapelin, nem a voz poderosa de Cid Moreira, e que aprendia a emitir opiniões. Não tinha reflexão no apresentador. Reflexão = humanidade.

Quando se veem hoje apresentadores irreverentes, sabe-se que o processo de transformação começou lá atrás. E não era gratuito. Seguia princípios ideológicos, como tudo que é relevante nesta vida. Muitas vezes, é tão simples fazer história.

***

Mas quem diria que um programa anti-TV, ou não TV, o gênero reality show, estaria no horário nobre da maioria das emissoras?

Primeira leitura: gente comum disputando grana e fama das grandes estrelas; uma Revolução Francesa na tela; o fim dos privilégios de uma aristocracia que dominava o meio havia décadas.

Porém, a mensagem não é compartilhar, unir, fratertiné, mas destruir o outro cidadão para, sozinho, conquistar o grande prêmio. Como? Muita traição e complô. É um paradoxo dentro do outro.

O participante do reality show aprendeu. Sabe que faz parte de um jogo, em que pessoas ditas normais fingem que vivem a "vida real", mas estão interessadas na busca da capa da revista e do paredão alheio. Para isso, precisam eliminar (prejudicar), guilhotinar, como numa era de terror midiático.

O primeiro reality foi a série An American Family, de 1973, que mostrou uma família que se deu mal, pois resultou em divórcio.

Em 2000, com o surgimento da marca Big Brother, o gênero se multiplicou como gremlins: Casa dos Artistas, A Fazenda, O Aprendiz, Esquadrão da Moda, Troca de Família, Ídolos, Solitários, Qual É o Seu Talento?, Hipertensão, No Limite, Operação de Risco, Transplante, Entre a Vida e a Morte, Casa dos Segredos.

Cidadãos disputam o melhor corte de cabelo, brigam com chefs de cozinha, choram quando são derrotados, enfrentam provas que demonstram "superação", costumam ser humilhados, aceitam as regras.

Mas não é apenas a falta de inteligência - ou excesso de músculos, narcisismo e tatuagens dos personagens - que agride o telespectador. É a mensagem de individualismo, que nada tem a ver com o mundo de hiperconectividade, redes sociais, militância online e preocupações com sustentabilidade que os novos tempos despertam.

As pessoas querem agregar, repartir, não se aproveitar das fraquezas de outros. O mundo mudou.

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Dias de hoje, fronteira dos EUA com Canadá. Um misterioso objeto radioativo cai na Terra. Testemunhas pensam ser um meteorito. Outra hipótese é de que a Al-Qaeda espalha por um pequeno avião radioatividade no ar.

Mas a agência governamental recupera o que parece ser uma cápsula espacial desconhecida da era soviética. E, surpresa, dentro dela, encontra um moleque russo, debilitado, com câncer e imunidade baixa. Talvez um sobrevivente de uma secreta missão a Marte dos anos 80.

Enquanto a Casa Branca precisa de respostas, a cada hora a história parece mais enrolada. O cosmonauta aparentemente nasceu em Marte, planeta para onde a antiga União Soviética mandara uma espaçonave, cujos tripulantes sobreviveram com os recursos de lá e procriaram, algo cientificamente possível.

É a sinopse de Pioneer One, série americana criada por Josh Bernhard, escritor, e Bracey Smith, diretor, que, diferentemente da maioria das séries produzidas, não teme a pirataria e nos quer corsários.

Ela é distribuída diretamente por meio da rede BitTorrent - responsável pelo compartilhamento de milhares de filmes e séries piratas -, proposta inédita que discute a guerra de trincheiras entre grandes produtores e torrents, extensões que possibilitam o compartilhamento de arquivos entre pessoas.

Com o engenhoso plot na cabeça, e sem a pretensão de fazer uma megaprodução, a dupla largou empregos e levantou grana numa campanha no site Kickstarter - a maior plataforma para se levantar fundos a projetos criativos, apoiada por Sundance Festival, YouTube, New York Times, CNN, Wired e outros. Dois meses depois, estrearam o piloto no site VODO.net.

Ganharam o prêmio de melhor drama no NYFTV (New York Festival Television). Inauguraram a era da "série de TV sem TV".

Os dois avisam no primeiro episódio: os próximos só serão realizados se os telespectadores doarem uma grana ou comprarem a camiseta ou o pôster da série no site de vendas com o sugestivo nome hackerthreads.

Rolou. Cada vez que a grana pingava, um novo episódio saía do forno. Os primeiros quatro foram baixados mais de 7 milhões de vezes. Completaram os seis episódios da primeira temporada. Uma segunda está prometida.

Tudo isso é novo, pioneiro e encorajador. Não vai solucionar o problema da indústria, nem será o airbag da atual crise de direitos autorais do setor. Porém, um grande e instigante roteiro, na boca de um ótimo elenco, é que faz da imperdível série realmente um sucesso.

Lição de moral: não basta rediscutir o meio, é preciso, como sempre, contar uma boa história (mensagem).

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