quarta-feira, novembro 23, 2011
Nem mocinho, nem bandido - LUIS EDUARDO ASSIS
Valor Econômico - 23/11/2011
A economia americana se estrebucha para sair da estagnação, a União Europeia usa as tripas para evitar uma separação litigiosa. Os analistas mais céticos só não estão mais pessimistas porque são comedidos e sabem que vão precisar de muito mais pessimismo se a China tiver problemas - melhor economizar agora para não faltar no futuro. O Armagedon parece estar próximo. E, no entanto, enquanto Deus não derrama o justo juízo sobre a humanidade, o investimento estrangeiro direto (IED) no Brasil só faz aumentar. Nos últimos 12 meses, o volume líquido internalizado supera US$ 80 bilhões (incluindo repatriações de empresas brasileiras), o que indica que teremos neste ano mais que o dobro de investimentos registrados no ano passado. Esse desempenho espetacular abriu espaço para duas interpretações algo exageradas.
O governo, por dever de ofício, estimula a tese de que esses números gigantescos apenas atestam o sucesso da política econômica dos últimos anos. É como se, finalmente, o mundo, mesmo combalido, reunisse forças para redobrar suas apostas no futuro brilhante do Brasil. Os mais entusiasmados lembram que esse é um "dinheiro bom", já que é aportado para investimentos de longo prazo, que geram empregos e aumentam a produção e a renda. Essa explicação é boa, mas seria ainda melhor se fosse verdadeira. Entre outros hábitos estranhos, os economistas gostam de chamar coisas diferentes pelo mesmo nome. Neste caso, o que se chama de "investimento" estrangeiro não tem correspondência com a noção de aumento de capacidade produtiva, o que explica o fato de que a expansão espetacular do IED conviva com um desempenho medíocre da taxa de investimento. Ou seja, o IED não é necessariamente investimento, já que inclui mera troca de ativos e empréstimos a subsidiárias aqui localizadas, o que não significa aumento da capacidade produtiva.
Outro contraponto é que, assim como os carros, os ternos e os restaurantes, as empresas brasileiras também estão muito caras, o que torna mais difícil explicar esse voraz apetite dos estrangeiros. Também aqui não parece ser o paraíso do empreendedorismo. Relatório preparado pelo Banco Mundial ("Doing Business 2011") mostra que nunca foi fácil, mas está ainda mais difícil fazer negócios no Brasil. Entre 183 países analisados, caímos da modesta 124ª posição em 2009 para o modestíssimo 127º lugar agora. Difícil acreditar na tese de que o crescimento do IED é apenas testemunho de nossas consagradoras virtudes.
Por essas e por outras, há também quem prefira lembrar que o enorme diferencial entre as taxas de juros internas e internacionais pode estar estimulando a entrada de recursos especulativos. O que se registra como "dinheiro bom" seria, na verdade, o dinheiro "ruim" dos especuladores do mercado de renda fixa, cuja vida foi dificultada pelo aumento da alíquota do IOF de 2% para 6% no ano passado. Essa visão mais picante esbarra em pelo menos três contestações. A primeira é que o fluxo de IED começou a subir antes, não depois, da aplicação do IOF. Um curioso caso de premonição. Mais instigante é constatar que a partir de abril de 2011 os empréstimos inter-companhias registrados como investimento estrangeiro passaram a pagar a mesma taxa de IOF que as aplicações em renda fixa com prazo inferior a dois anos. Outro embaraço à tese conspiratória é que a quantidade de novos registros de investimento estrangeiro assim como o número de receptores destes recursos mostram estabilidade, contrariando o que seria de se esperar se o aumento do IED fosse determinado apenas pelo diferencial de juros.
O fato é que é pouco se sabe sobre os investimentos diretos, até porque não cabe ao Banco Central monitorar o que acontece depois que os recursos são internalizados. O forte afluxo destes recursos recentemente nem nos autoriza a proclamar a supremacia da economia brasileira no meio da turbulência internacional, nem dá guarida à tese conspiratória de que este capital é meramente especulativo. É sempre uma platitude dizer que a verdade está no meio (até porque qualquer assertiva, por mais absurda, sempre está a meio caminho de duas outras posições) mas talvez estejamos vivendo uma situação que combina os dois extremos. Isto chama a atenção para o fato de que é falsa a analogia entre reservas internacionais do país e a poupança que as pessoas comuns fazem para usar nas adversidades. Parte significativa da formação das reservas nestes últimos anos teve como contrapartida o forte crescimento da dívida externa privada, embutida nas estatísticas de investimento direto, que desde 2007 supera a dívida pública externa. Uma reversão nas expectativas otimistas dos investidores estrangeiros, qualquer que tenha sido sua motivação original, pode alterar este quadro aparentemente confortável em pouco tempo. As reservas brasileiras não são do Brasil.
Luis Eduardo Assis é economista diretor de política monetária do Banco Central do Brasil e professor da PUC-SP e FGV-SP.
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