Vingança na carne
VINICIUS MOTA
FOLHA DE SP - 24/10/11
SÃO PAULO - Multidões fizeram fila para ver o cadáver esbugalhado do ditador Gaddafi, disposto numa câmara frigorífica na cidade de Misrata. A exposição dos seus despojos começou assim que foi morto, após a ajuda crucial da aviação de Nicolas Sarkozy -esse Napoleão em versão "pocket".
As imagens da Líbia lembraram o destino dos corpos de Mussolini, pendurado e humilhado numa praça de Milão, e de Ceausescu, fuzilado na Romênia. Evocaram os métodos punitivos utilizados pelos mais sádicos tiranos no exercício do poder.
Cadáveres de inimigos apodrecendo em público, alamedas de crucificados ou de cabeças na ponta de estacas a demonstrar a força impiedosa do império. Restos de rivais alimentando crocodilos no zoo do déspota.
O grego Heródoto, do 5º século antes de Cristo, narra a vingança de Astíages, rei dos medos, contra Harpago, seu general que descumpriu a ordem de matar o recém-nascido Ciro -o qual mais tarde fundaria o império persa. Astíages convidou o traidor para um banquete onde serviu carne do próprio filho de Harpago.
Ao enfatizar a brutalidade dos costumes asiáticos, Heródoto demarcava a distância para os cultivados gregos. Seu contemporâneo Sófocles, dramaturgo, trouxe o debate para dentro de casa. Em "Antígona", a protagonista desafia a ordem do rei de Tebas, Creonte, que proíbe o sepultamento de Polínices, irmão de Antígona acusado de traição.
O respeito à incolumidade dos corpos, dos vivos e dos mortos, é marca antiga e fundamental da civilização. É uma das primeiras fronteiras a serem cruzadas pelos tiranos em todos os tempos.
Um caminho sem volta para esses celerados, como se vê nos epílogos sangrentos de autocratas que caem nas mãos de inimigos ou dos povos que oprimiram. Hitler, consciente disso, com os russos à porta, matou-se e ordenou que queimassem o seu cadáver.
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