A lógica da inércia e a perda do essencial
WASHINGTON NOVAES
O Estado de S.Paulo - 15/07/11
Texto interessante de Vitor Hugo Brandalise no caderno Aliás (10/7) lembrou que há 300 anos, no último dia 11, a vila de São Paulo - então com 210 casas de taipa batida, mil habitantes, sete igrejas, quatro bicas d"água - foi promovida a cidade. Um tempo em que os moradores eram obrigados a tapar, com suas mãos e instrumentos, os buracos nas ruas, sob pena de multa de 6 mil réis ou até 30 dias de cadeia. Bons tempos, apesar da escravatura de índios?
Trezentos anos depois, pergunta-se com insistência o que se fará na cidade de quase 12 milhões de pessoas, na metrópole de quase 20 milhões. Mas na prática quase não se consegue sair do papel. As Câmaras Municipais de 39 municípios da Grande São Paulo criaram há pouco (Estado, 10/5) o Parlamento Metropolitano, que não legislará, fará estudos para aprimorar a legislação nas áreas de transportes, educação, Plano Diretor Metropolitano. Virá somar-se ao Estatuto da Cidade, nacional (Lei 10.257), que no dia 10/7 completou uma década, sem conseguir transformar em realidade o propósito de implantar planos diretores em todos os municípios de mais de 20 mil habitantes e, por meio deles, a "reforma urbana". Provavelmente também terá como companheiros o São Paulo 2040 - Visão e Planejamento de Longo Prazo para a Cidade de São Paulo, que a Prefeitura paulistana - que já tinha a Agenda 2012 - Plano Diretor Estratégico - encomendou à Fundação de Apoio à Universidade São Paulo, com cinco eixos: promoção do equilíbrio social, desenvolvimento urbano, acessibilidade, melhoria ambiental e oportunidades de negócios. "Sobram planos, falta ação", observou com toda a razão editorial deste jornal (29/12/2010, A3).
Que se fará, então? Num debate promovido dia 19/6 pelo Aliás, três pensadores da área do planejamento urbano - Ermínia Maricato, Cândido Malta Campos e Jorge Wilheim - concordaram em alguns pontos: 1) É preciso planejar intervenções urbanas substanciais; 2) é fundamental superar o "modelo rodoviarista"; 3) é indispensável valorizar os espaços de convivência coletiva, "na lógica contrária à dos condomínios e bunkers privados". Mas como chegar aí? Outro professor de Urbanismo, na Universidade da Pensilvânia, Witold Rybczynski, afirma (Estado, 19/12/2010) que "só os comunistas e os ditadores conseguem planejar cidades: na democracia não se podem proibir migrações".
Então, estamos em maus lençóis. Na Grande São Paulo, em seis anos foram lançados 3 mil grandes edifícios, com mais de 185 mil apartamentos; em 2010, 781 unidades, com 5,33 milhões de metros quadrados, 1,25 milhão de metros quadrados de terrenos, 133 milhões de tijolos, 6,7 milhões de sacos de cimento, 5,3 milhões de toneladas de areia (Estado, 13/5), no valor de R$ 15 bilhões. Uma em cada seis pessoas na cidade vive em apartamentos; no Rio de Janeiro, duas em dez; em Santos, 63% da população.
Que nos espera? Assusta ler o relato do correspondente Jamil Chade (27/12/2010) de que, segundo a OCDE, US$ 2 trilhões de dívidas ameaçam com falência mais de cem cidades norte-americanas e US$ 1,7 trilhão, algumas das mais charmosas cidades europeias (Barcelona, Madri, Veneza). Desde 1937, conta ele, 619 cidades norte-americanas já declararam falência, com a avalancha incessante de problemas. Hoje nem mesmo a exemplar Copenhague escapa às aflições: terá de construir, em aterros implantados em ilhotas, áreas ligadas ao continente por pontes e canais, para abrigar 40 mil das 60 mil pessoas que se somarão aos atuais habitantes até 2025 (Folha de S.Paulo, 5/7). Será inescapável o crescimento constante?
São Paulo precisará de mais 740 mil habitações até 2024 (Estado, 7/12/10); o Estado, 1,2 milhão; o País, 5,8 milhões. Ainda que nossos índices de natalidade já estejam abaixo da taxa de reposição (dois filhos por mulher, substituindo pessoas que morrem). A mesma situação do mundo, também com índices abaixo da taxa de reposição, mas chegando a 7 bilhões de pessoas em 31 de outubro próximo, 8 bilhões em 2025, mais 1 bilhão em 2043, 10 bilhões em 2083, segundo o Fundo de População das Nações Unidas (Folha de S.Paulo, 10/7). Por aqui só estabilizaremos a população por volta de 2030.
E enquanto não conseguimos avançar com nossos planejamentos, as metas perseguidas não saem do lugar. Outro exemplo, outra cidade: jovens de 15 a 26 anos sem vínculo empregatício e com envolvimento com drogas são 53% das vítimas de homicídio em Aparecida de Goiânia (500 mil habitantes) e periferia; se forem somadas as vítimas até 35 anos, essa participação subirá para 87% (O Popular, 7/6). Por um ângulo mais aberto: no Brasil há 13,9 milhões de jovens, adultos e idosos que são analfabetos (9,6% da população total). Em quatro Estados (AL, MA, PI, PB) os analfabetos são mais de 20% da população.
E assim vamos, com estudos mostrando o quanto os dramas das megalópoles afetam as pessoas: milhares de mortos pela poluição do ar a cada ano na cidade de São Paulo; ruídos urbanos afetando o cérebro humano, segundo estudos das Universidades de Heidelberg, na Alemanha, e McGill, no Canadá (Pravda, 9/7). Cidades como Goiânia, que já tem de exportar cadáveres, porque o Instituto Médico Legal não dá conta, não tem mais espaço para abrigar todos os que têm de ser identificados (O Popular, 8/7). Metrópoles como São Paulo, que já tem de buscar água a 80 quilômetros de distância, "dando cotoveladas nos vizinhos", na Bacia do Ribeira de Iguape, e fazê-la subir 360 metros (a que custo ?), para garantir o abastecimento até 2016.
Com tudo isso, vamo-nos esquecendo das lições do pensador basco Julio Baroja, já citado neste espaço. "Na grande cidade, começamos perdendo o essencial, o mais próximo, mais íntimo: a visão da nossa própria sombra e o som dos nossos passos". Mas seguimos num enorme faz de conta, caracterizado com precisão por Giuseppe di Lampedusa: "Tudo deve mudar, para que tudo continue como está". Sempre haverá quem ganhe.
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