Meu casuísmo querido
ALON FEUERWERKE
Correio Braziliense - 15/07/2011
Sobraram outros problemas sérios na Ficha Limpa. Um grave é a retroatividade. Se o sujeito cometeu ato que na época não produzia automaticamente inelegibilidade, não pode ficar inelegível por uma lei posterior
A Câmara dos Deputados decidiu adotar a via mais rápida (ou menos lenta) para dar posse aos parlamentares beneficiados pelo adiamento da vigência da Ficha Limpa. Uma boa decisão. Espera-se que o Senado acompanhe. E rapidamente.
O corporativismo congressual não pode estar acima da lei.
Critica-se a Justiça por lentidão. Então, quando ela decide, deveria ser apenas o caso de cumprir. Isso fez o presidente Marco Maia (PT-RS). Parabéns para ele.
Ou a Lei da Ficha Limpa valeu para as eleições do ano passado ou não valeu. Não valeu? Pronto. Tomem posse os beneficiados pela sentença em última instância. Os prejudicados disputem nova eleição.
Estado de direito é isso. É curioso notar quando alguns exigem do poder manter-se no estrito limite legal e, ao mesmo tempo, pedem para si próprios a prerrogativa de escolher quais decisões judiciais vão cumprir e quais não.
O tapetão do outro é condenável. Mas o meu é sempre limpinho. Tipicamente nosso. Como também outro princípio. O ônus da prova cabe sempre ao meu adversário. Para absolver ou condenar, conforme o caso.
A Ficha Limpa é uma boa lei, com problemas. Um deles já foi resolvido pelo Supremo Tribunal Federal, que cuidou em boa hora de proteger a norma pela qual mudança de regra a menos de um ano da eleição nãovale. Foi prudente.
A política brasileira é terreno fértil para casuísmos, especialmente quando impulsionados pelo clamor da opinião pública. Entendida como a turma que julga dominar a opinião pública.
E os direitos e garantias devem estar protegidos inclusive contra os excessos da opinião pública.
Ainda que a dita cuja não costume concordar com isso. A não ser quando ela mesma se sente ameaçada. Aí se lembra do Estado de direito.
Sobraram outros problemas sérios na Ficha Limpa. Um grave é a retroatividade. Se o sujeito cometeu ato que na época não produzia automaticamente inelegibilidade, não pode ficar inelegível por uma lei posterior.
É um princípio constitucional, uma blindagem de direito individual.
Se ninguém pode alegar desconhecimento da lei, tampouco ninguém pode adivinhar como será exatamente uma lei futura.
Os defensores da aplicação imediata da Ficha Limpa buscaram atalhos jurídicos para alegar que não é bem assim. Data vênia, como diriam os magistrados, é bem assim sim.
Todo o debate da Ficha Limpa foi conduzido na sociedade e no Congresso com viés punitivo. Ganhou apoio maciço exatamente por essa razão.
Tratava-se de encontrar um mecanismo para punir políticos pouco merecedores de representar o povo. Uma guilhotina. Como o médico que é proibido de clinicar, ou o advogado de advogar. E por aí afora.
Excelente, desde que respeitados os limites constitucionais da garantia de direitos. Um exemplo é o político que antes da Ficha Limpa renunciou para não ser cassado.
Se soubesse que ficaria inelegível, certamente encararia o processo político, para ter uma chance de escapar.
Se hoje o sujeito está feliz no papel de acusador ou de carrasco, amanhã pode estar sentado no banco réus. Real ou figurado. Sempre é bom lembrar disso.
E prudência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém.
Demônios
Continua o debate no Congresso sobre uma lei específica para crimes no mundo digital. Ainda que ninguém tenha até hoje demonstrado cabalmente a necessidade de uma legislação particular para isso.
Inclusive porque uma das consequências do escândalo de espionagem jornalística no Reino Unido é abrirem-se as portas para os fanáticos da censura.
Que encontraram, digamos assim, um gancho de legitimidade.
Para, quem sabe?, jogar a criança fora junto com a água suja.
O que os inspiradores de uma lei específica para crimes digitais deveriam esclarecer, antes de mais nada? Precisariam responder a uma pergunta preliminar.
"Qual crime cometido no universo digital ficou sem punição pela ausência de uma lei específica que o previsse?"
Uma pergunta simples, mas essencial.
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