domingo, julho 31, 2011

LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - Tem cada um...

Tem cada um...
LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO
O ESTADÃO - 31/07/11

Tem, por exemplo, o Victor, que não perde oportunidade de ostentar sua cultura; e o Pinheiro, cujo sono é lendário

Tem, por exemplo, o Victor, que não perde oportunidade de ostentar sua cultura, para divertimento e, às vezes, irritação da turma. Como na vez em que houve um silêncio na mesa do bar em que eles se reuniam e o Victor disse:

– Eu conheço este silêncio de um filme do Bergman.

O Marcão não aguentou.

– Como, de um filme do Bergman? Como um silêncio pode ser igual a outro silêncio, que não tem nada a ver?

O Victor apenas sorriu. Não poderia esperar que o Marcão, logo o Marcão, entendesse. O que mais irritava o Marcão era aquele sorriso do Victor.

Mas a melhor do Victor quem contou foi o Mendonça, médico, que também frequentava a turma. O Victor andava tossindo muito, e expectorando, e procurara o Mendonça no seu consultório.

– Acho que peguei a gripe.

– Você tem muito catarro? – perguntara o médico.

– Tenho.

– De que cor é o catarro?

E então o Victor pensara um pouco e respondera:

– Sabe o verde daquele afresco do Tiepolo no Palazzo Clerici, em Milão?

O Victor estava presente na mesa quando o dr. Mendonça contou o fato e apenas sorriu diante da gargalhada geral da turma. Depois deu de ombros e disse:

– O que eu vou fazer se vocês não viajam?

O Marcão ficou pra morrer.

E tem o Pinheiro, também chamado Pinho, cujo sono é lendário. Contam que o Pinho não pode ir ao cinema porque dorme no começo do filme, sempre. Filme de caubói, filme de guerra, inclusive intergaláctica... Não via nem os créditos completos.

– Você chegou a ver o nome do diretor, Pinho?

– Não, fui só até o produtor.

Mas não deve ser verdade o que contam sobre a separação do Pinho.

Contam que o casamento do Pinho e da Eneida não estava dando certo – em grande parte porque o Pinho invariavelmente dormia quando a Eneida começava a lhe dizer alguma coisa, às vezes no meio de uma frase. E que um dia a Eneida levantara da cama do casal, saíra à rua, contratara uma empresa de mudança e voltara com três carregadores, que passaram a tirar tudo de dentro do apartamento. Tudo. Geladeira, fogão, móveis da sala, televisão, mesa de jantar...

– Este armário também vai, dona?

– Tudo.

Deixaram o quarto de dormir, onde o Pinho ainda roncava em cima da cama, para o fim. E o quarto também foi esvaziado.

– E a cama, dona?

Eneida hesitou. Levava ou deixava a cama? Decidiu:

– A cama vai.

– E o doutor?

– Fica. Deixem o colchão pra ele.

Aqui as versões divergem. Há quem diga que a Eneida voltou atrás e mandou carregarem o colchão também, deixando o Pinho dormindo no chão. Outros dizem que o colchão, misericordiosamente, ficou. Mas todos concordam que, como não havia mais nada no apartamento onde colocar o bilhete de despedida que escrevera para o marido, a Eneida o colocara entre dois dedos do seu pé. Para o Pinho ler quando acordasse.

Um comentário:

Anônimo disse...

Murilo,
grato pela ótima coletânea, sugiro a publicação do texto de Luis Fernando Verissimo publicado n'O Globo de domingo. Diversamente do que ocorre na quinta-feira, são diferentes as colunas do escritor gaúcho publicadas no jornal carioca e no Estadão aos domingos.
Obrigado.
Marco, São Paulo, Capital