sexta-feira, maio 13, 2011

MÍRIAM LEITÃO - Tumulto na noite



Tumulto na noite
MIRIAM LEITÃO
O GLOBO – 13/05/11
Era para ser um projeto que conciliasse duas necessidades do país, virou um conflito aberto com o relator sendo aclamado por um dos lados, que é praticamente o coautor do texto. A discussão do Código Florestal é reveladora. Só na noite de quarta-feira mostrou os erros do governo, a fratura da base parlamentar e o destempero do relator, o deputado Aldo Rebelo.
O relator prefere desqualificar e ofender a argumentar e convencer. Acaba prisioneiro de suas próprias palavras. Seu ataque ao marido da ex-ministra Marina Silva é uma confissão de culpa: ou bem o deputado considerava a acusação falsa e por isso evitou o depoimento no Congresso; ou está convencido da culpa do marido de Marina e portanto obstruiu uma investigação.
O que se discute é mais profundo e decisivo. É como o Brasil pode conciliar suas duas poderosas vocações. O Brasil é um dos maiores produtores agropecuários do mundo e o país com a maior biodiversidade. Isso nos coloca na principal esquina do planeta: aumentar a produção aproveitando a oportunidade aberta pelo crescimento da demanda em países de grandes populações e rápido crescimento; e preservar o patrimônio natural do país no momento em que a biodiversidade passa a ser de fato valorizada.
Aclamado com os gritos de “Aldo, Aldo” por uma parte do Congresso; ofendido pela outra parte em troca da acusação que lançou, o deputado ficou ainda mais inadequado ao papel de conciliador de posições.
O agronegócio é espinha dorsal da economia brasileira. Imagine que ele não exportasse o que exporta. Pode até tirar da conta o que o setor fornece ao mercado interno – que é até maior – e mesmo assim se chega a números impressionantes. A balança comercial do setor fechou 2010 com um superávit de US$63 bilhões. Sem o agronegócio, o Brasil naufragaria num gigantesco déficit.
Mas há inúmeras práticas danosas que precisam ser combatidas; os ruralistas precisam se atualizar urgentemente. Há um lado moderno que pouco aparece nessas refregas públicas. Uma pena que os modernos se deixem representar por líderes com discurso tão mofado. Há outro lado totalmente lavoura arcaica. Esta semana mesmo a Justiça do Trabalho condenou o grupo J. Pessoa a uma multa de R$5 milhões pela ação proposta pelo Ministério Público do Mato Grosso do Sul, após o Ministério do Trabalho ter constatado que mais de mil trabalhadores, entre eles 800 indígenas, trabalhavam em duas das usinas do grupo em condições degradantes, em 2007. Na época, o presidente do grupo, J. Pessoa de Queiroz Bisneto, era conselheiro do Instituto Ethos e diretor de Sustentabilidade da Unica. Entre outros absurdos, os trabalhadores dormiam amontoados. Um dos alojamentos tinha 2,8 metros por 9,4 metros. Lá, dormiam 20 índios. Faltava tudo: banheiros, água limpa, higiene nos alojamentos, proteína na alimentação. A empresa já tinha sido autuada dez vezes.
Em relação à questão ambiental também o setor tem exemplos estimulantes de conciliação e avanços convivendo com as mais bizarras práticas destruidoras, como o correntão na Amazônia.
Os sinais da mudança do tempo são inegáveis. Na última década, nós não tivemos um ano sequer em que não houve um evento climático extremo de grandes proporções no mundo; no Brasil tivemos sucessão de secas e enchentes, todas bateram recordes históricos. Estudo recente do Inpe e do MetOffice, da Inglaterra, mostrou que a Amazônia está ameaçada por duas forças: só uma podemos controlar. De um lado, a mudança climática; de outro, o desmatamento. Qualquer uma dessas forças pode destruir a Amazônia. O desmatamento e as queimadas contribuem para a mudança climática, portanto, convoca o perigo que não podemos controlar.
A Agência Nacional de Águas (ANA) mostrou no seu último levantamento que as bacias brasileiras estão quase todas comprometidas por poluição e erosão, os nossos aquíferos estão ameaçados, e defendeu em nota técnica a recomposição das matas ciliares e a manutenção das Áreas de Preservação Permanente (APP) como está proposta na legislação atual. Não existe agricultura sem água. A Amazônia é fonte de chuva em todo o país. Seguir o sensato conselho da ANA deveria ser parte da estratégia da agricultura. Os produtores não deveriam se esquecer também que a segunda maior fonte de água do Brasil é o cerrado, sobre o qual avançam como se fosse uma vegetação pobre, que pudesse ser, toda ela, substituída por culturas. Já há produtores sem água por não terem protegido as fontes. Como a Embrapa já mostrou em estudos e pesquisas, é no cerrado que estão espécies que poderão dar ao Brasil a capacidade de desenvolver sementes resistentes a pouca água e muito calor no futuro que se aproxima. A Mata Atlântica não suportaria mais nenhuma ofensa. Seus pequenos e valiosos fragmentos têm que ser protegidos a qualquer custo e a meta tem que ser não apenas preservar o existente, mas aumentar a cobertura florestal.
O governo em início de mandato deveria tirar duas lições da lamentável noite de quarta-feira. Primeiro, que sua base parece muito grande, mas é heterogênea demais e vai se fragmentar a cada votação se não tiver uma boa e forte liderança. O assunto tratado no projeto de mudança do Código Florestal é estratégico, não pode ser capturado por um dos grupos em conflito. O governo tem que dizer qual é sua política. Do contrário, ficará nessa contradição de ter uma vasta maioria, e usar seu partido mais importante para obstruir a votação de um projeto relatado por um integrante de sua própria base.

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