sexta-feira, maio 13, 2011

HÉLIO SCHWARTSMAN - Entre quatro paredes


Entre quatro paredes
HÉLIO SCHWARTSMAN
FOLHA DE SÃO PAULO 

Desenvolvo hoje um textículo que escrevi para a versão impressa da Folha do último domingo sobre a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de estender a casais homossexuais os direitos e obrigações previstos na figura jurídica da união estável. Comecemos pelo mérito da coisa.

O que dois ou mais adultos fazem consensualmente entre quatro paredes em matéria de sexo é assunto que diz respeito apenas a eles. Desde que em comum acordo e sem envolver menores, não há nada de intrinsecamente errado com homossexualismo, masoquismo, sadismo, fetichismo, coprofilia, zoofilia (se o animal em questão não se opuser) e nem mesmo com a vida monástica. Se há um comportamento reprovável do ponto de vista da boa convivência social, ele está não no homossexualismo ou no que a psiquiatria chama de parafilias, mas no desejo incontido de controlar a sexualidade alheia.

E, se é justo que casais heterossexuais possam herdar os bens um do outro, estabelecer vínculos previdenciários e adotar crianças, entre outros benefícios, não há nenhuma razão para deixar de estender esses mesmos direitos a pares do mesmo sexo. Um cidadão é um cidadão independentemente de seus hábitos copulativos.

A turma mais conservadora, que acusa o Supremo de ter usurpado as funções do Legislativo, parece ignorar que a analogia é uma fonte perfeitamente legítima de interpretação jurídica. Ela tem origens no direito romano: "Ubi eadem ratio, ibi idem jus", isto é, onde houver o mesmo fundamento, haverá o mesmo direito. Ainda que a letra da lei diga que a família é constituída pela união de homem com mulher, a Carta consagra o princípio de que todos os cidadãos são iguais diante da lei, o que já basta para ampliar o escopo da definição.

Vou um pouco mais longe e afirmo que existem determinados assuntos com os quais o Poder Legislativo, no qual grupos organizados como igrejas, sindicatos e certas categorias profissionais acabam adquirindo um peso específico maior do que aquele que de fato têm na sociedade, não lida bem. Questões morais são um bom exemplo. Dado que poucos legisladores estão dispostos a ser identificados como o parlamentar que foi contra "a palavra de Deus" ou que rifou "as conquistas dos trabalhadores", esses temas são raramente abordados. Também fico um pouco relutante em entregar a 11 pessoas não eleitas tarefas que em tese caberiam a 594 indivíduos munidos de mandato popular, mas, diante da inércia congressual, é preferível que esses 11 atuem a blindar a legislação contra avanços sociais e a ampliação de direitos. A ideia geral é que esses dois Poderes, mais o Executivo, se equilibrem em um sistema de freios e contrapesos e produzam resultantes viáveis. Está longe de ser uma solução perfeita, mas ela vem funcionando mais bem do que mal em países democráticos há uns 200 anos.

Voltando ao nosso caso, é pouco provável que a decisão do STF ponha fim às guerras culturais em torno da questão. O motivo é simples: o julgamento teve como objeto apenas as uniões civis, deixando de fora o casamento propriamente dito. Ou seja, passado um primeiro momento em que homossexuais celebrarão os direitos recém-reconhecidos e em que os conservadores lamentarão os tempos e os costumes, a contenda voltará. E a briga é boa porque ambos os lados se julgam cobertos de razão.

Negar o casamento "de papel passado" aos homossexuais equivale a declará-los cidadãos de segunda classe. É fácil visualizar o grau de indignação que isso pode causar imaginando um casal inter-racial que procure um cartório para "contrair matrimônio" (adoro essa expressão!) e ouça do oficial: --Vocês podem estabelecer uma união estável, com declaração registrada, que lhes dá os mesmos direitos e deveres do casamento, mas não vou casá-los. Bem, não seria difícil encontrar um advogado disposto a processar esse oficial pelo inafiançável crime de racismo. Troque agora o "inter-racial" por "homossexual" e o "oficial" por "Estado" e temos uma ideia de como gays e lésbicas devem se sentir.

Quanto aos conservadores, não costumo comungar de suas dores. Se acham que a sexualidade alheia ameaça a família, pior para eles e suas famílias. Idealizações não gozam de proteção legal. Mas creio que eles têm um ponto quando se queixam de propostas legislativas capitaneadas pelo movimento gay --o PLC 122/2006 e o PL 6418/2005-- que, dependendo da interpretação, proibiriam padres e pastores de dizer que o homossexualismo é um pecado, por exemplo. Não me entendam mal. Sou um ateu convicto que não acredita em pecado e acha que o mundo atual viveria melhor se não houvesse religiões, mas sou também um democrata. Não creio que possamos ou devamos patrulhar pensamentos e declarações, por mais absurdas que sejam.

Não vejo como se possa proibir uma igreja homofóbica de ensinar seus seguidores, como vem fazendo às vezes há milênios, que tal prática é condenável. O que um sacerdote conta a seus fiéis entre as quatro paredes do templo é assunto que diz respeito exclusivamente a eles. (Reconheceram o argumento? É difícil defendê-lo para a troca de fluidos corporais e recusá-lo para a troca de ideias!).

Vou até um pouco mais longe e sustento que igrejas têm todo direito de não aceitar membros gays. Um templo não é, afinal, um órgão oficial ou um permissionário de serviços públicos, os quais precisam sujeitar-se a regras de universalidade. Não está feliz com sua igreja, procure outra ou, no limite, funde a sua própria. Eu já o fiz e posso assegurar que, pelo menos em termos fiscais, vale a pena.

Evidentemente, ninguém vai resolver o problema das visões de mundo conflitantes. Ele é tão disseminado que talvez nem seja um problema, sendo mais bem descrito como a ordem natural das coisas. Ainda assim, existem medidas relativamente simples que têm o potencial de reduzir a área de atrito entre liberais e conservadores, contribuindo para uma sociedade mais tolerante e pacífica.

No rastro de Richard Thaler e Cass Sunstein, autores de "Nudge - O Empurrão para a Escolha Certa", proponho que o Estado caia fora do ramo de casamentos e passe a reconhecer apenas uniões estáveis. Pode parecer uma revolução, mas, na verdade, muda muito pouca coisa na esfera prática. É que as uniões já dão conta de todas as questões que importam para a vida civil, como sucessões, guarda de filhos e direito a pensão no caso de divórcio. Nenhum documento ou repartição oficial falaria mais em casamento, que ficaria inteiramente a cargo de igrejas ou qualquer outra associação civil que queira explorar o negócio. O bonito dessa história é que todos estariam livres para celebrá-lo de da forma que quiserem. Os católicos, por exemplo, poderiam continuar a oferecê-lo só a pares heterossexuais e em caráter indissolúvel, enquanto a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) poderia criar as regras e rituais que desejasse.

O segredo da coisa --e a origem da confusão-- é que o casamento hoje reúne duas funções totalmente distintas: uma contratual, com consequências jurídicas, e outra de reconhecimento social, com implicações para o status das pessoas. Do ponto de vista do Estado, apenas a primeira é relevante, mas é a segunda que responde pela maior parte das desavenças. Essa dupla função até tem razões históricas. Antigamente, o casamento funcionava como uma espécie de licença para fazer sexo e ter filhos, da mesma forma que hoje contamos com carteiras de habilitação para dirigir veículos. Só que, com a ampliação dos direitos individuais, que teve início em fins do século 18, essa função social se tornou anacrônica. Hoje, pelo menos no Ocidente, o sexo consensual entre adultos é um direito inquestionável que independe de licença prévia. Eliminar a ambiguidade, fazendo com que o poder público se atenha aos aspectos jurídicos das uniões e deixando o "casamento" para instituições de direito privado, é uma maneira inteligente de desembolar o meio de campo.

Não chega a ser uma garantia de que todos viverão felizes para sempre, mas é um meio de evitar que nos embrenhemos em disputas estéreis totalmente evitáveis. Pelo menos do ponto de vista do Estado, o casamento é, como se dizia nos anos 60, uma instituição falida.

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