A vida é o caminho
FERNANDA TORRES
FOLHA DE SÃO PAULO - 08/05/11
NO DIA EM QUE EU SOUBE que o Festival de Cannes havia me concedido, com Barbara Sukowa, o prêmio de melhor atriz de sua edição de 1986, estava na casa do meu irmão pensando em desistir da profissão. Aos 19 anos, emburrada com o ritmo industrial e a responsabilidade de encarar a mocinha da novela "Selva de Pedra", senti o chão se abrir quando o Claudio atendeu o telefone e disse: "Ai, Nanda, você ganhou lá em Cannes".
No momento do folhetim em que a personagem Simone Marques fugia para Nova York para se transformar na artista plástica Rosana Reis, a película de Arnaldo Jabor havia sido selecionada em Cannes. Em pouco mais de uma semana, fui para os Estados Unidos e voltei para gravar as externas da virada da heroína da TV e embarquei para o festival francês. Uma maratona digna do que minha mãe chama de "a glória com seu cortejo de horrores".
Era minha segunda vez no festival, a primeira em uma mostra oficial. Na Croisette, percebi a gravidade de minha caipirice: eu não dominava nenhuma língua estrangeira, não era dona de uma beleza estonteante e não sabia me vestir ou me comportar fora do Brasil.
No dia seguinte à exibição, o ator e parceiro Thales Pan Chacon ligou perguntando se eu já tinha dado uma olhada nos encartes embaixo da porta. As inúmeras bolas pretas dos impressos refletiam a péssima opinião dos críticos a respeito da nossa fita.
Fiz as malas e voltei para a urgência dos estúdios de TV.
Arnaldo Jabor ligou dizendo que corria o boato de que eu poderia levar o prêmio de atriz, mas eu não queria nem podia criar mais desassossego. Fiquei.
Quando soube do resultado, lamentei não estar lá. Doeu saber que a agraciada recebeu das mãos de Sting, astro-rei do grupo de rock Police, o lindo broche de ouro na forma de uma folha de palmeira. Aqui, a notícia se propagou pela voz de Cid Moreira no "Jornal Nacional". O povo fazia o V da vitória nas ruas em um ufanismo digno de Copa do Mundo.
O Brasil era um país isolado. Não existia a globalização ou os emergentes, a inflação comia solta e casos raros como os do extraordinário "Pixote" e do sensual "Dona Flor e seus Dois Maridos" prometiam, vez por outra, nossa inclusão no mundo civilizado.
Apesar do êxtase da conquista, sempre soube que minha inexperiência roliça não se comparava ao talento de atrizes como Marília Pêra e Sônia Braga.
Sônia, aliás, fazia parte do júri, e acredito que tenha contribuído para a minha escolha. Com a ajuda do prêmio, participei de dezenas de festivais no exterior e recebi alguns convites de trabalho fora de casa. Virei cidadã do mundo, mas segui na direção oposta. Greta Garbo, quem diria, acabou no Sesc Tijuca.
O cinema perdeu a força paulatinamente até desaparecer com a Embrafilme. Bia Lessa me sondou para fazer "Orlando", de Virginia Woolf, no teatro. Troquei o "grand écran" por um palco no subúrbio carioca. Eu iria a Cannes ainda uma última vez, com "Kuarup". E só.
Meu caso parece com o de Sandra Corveloni ("Linha de Passe"). Grávida, Sandra recebeu a notícia em casa e voltou imediatamente para a concretude sem luxo de seu grupo teatral. O cinema é um amante irresistível, mas exige uma rotina solitária. Fui uma franco-atiradora por mais de 15 anos até precisar de um chão.
Guardo o prêmio num cofre, raramente o vejo. Tenho orgulho de tê-lo, mas seu valor é secundário diante da convivência com gente do calibre, entre tantos, de Walter Lima Júnior, Arnaldo Jabor, Ruy Guerra, Anthony Hopkins, Gerald Thomas, Domingos Oliveira, Walter Salles, Daniela Thomas, Luiz Fernando Guimarães, Jorge Furtado e João Ubaldo Ribeiro.
Como diria Tirésias: a vida é o caminho.
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