Resíduos
MANOEL CARLOS
REVISTA VEJA- RIO
Não sei se vocês gostam de café com leite. Eu amo de paixão. Para mim está acima de qualquer bebida na transmissão de calor, afeto familiar, aconchego. Café com leite lembra lanches de domingo, pais e filhos em volta da mesa, a avó cochilando na cadeira de balanço, crianças correndo no quintal, sino de igreja chamando para a missa, matinês, namoro entre primos... e a morte ainda longe, sem levantar suspeita alguma. Café com leite lembra felicidade e ausência de dor e sofrimento. E se tiver como acompanhamento pão quentinho com manteiga, num tempo sem margarina e adoçantes... bem, aí o casamento será perfeito.
Acreditem: quando estou de mal comigo e com tudo o que me cerca, desgostoso com o meu próprio viver, que isso às vezes acontece; num daqueles dias em que levantamos com o pé esquerdo ou dormimos descobertos, é com uma boa xícara de café com leite que eu me reconcilio com a vida. Prazer tão banal e simplório eu herdei da minha mãe, que ficava junto à porta da cozinha, olhando o céu azul, a caneca, fumegante, agasalhada pelas duas mãos em concha.
Vocês poderão achar que isso é uma bobagem e que não vale uma crônica na revista, já que muitas pessoas têm esse mesmo gosto, independentemente de qualquer inspiração familiar, mas comigo a sensação causa um pequeno arrepio, misto de prazer e de temor, sempre que estou com uma caneca de café com leite na mão. Sinto a presença da minha mãe, viva. Mas não só aí eu me reporto a ela e me vejo sob sua influência direta. Não. Existe um exemplo mais explícito e intrigante. É na caligrafia. Entendam como isso é curioso e possivelmente raro. A primeira vez que notei certa semelhança entre as nossas letras foi ao escrever um bilhete para a empregada, que eu deixei pregado à geladeira. Não valorizei muito o achado, guardando para mim aquela sensação de prazer e temor que se repetia. Teria ficado nisso e talvez nunca mais reaparecesse, mas... pouco tempo depois, um poema que eu escrevera a mão caiu sob os olhos da minha irmã Elza. E ela me disse de imediato:
— Você imitou a caligrafia da mamãe! Igualzinha!
— Mas eu não imitei — protestei com sinceridade. — Juro!
— Ah, meu irmão, acha que eu não conheço a sua letra?
Depois, sozinho, procurei uma carta escrita pela nossa mãe, do tempo em que eu estava no internato, guardada por mim como um tesouro. Comparei então as duas caligrafias e vi que minha irmã tinha razão. Eram muito parecidas, talvez mesmo idênticas. E aí, com uma folha de papel em cada mão, passando os olhos de uma para a outra, sucessivamente, senti novamente a estranha sensação das duas vezes anteriores, como se eu estivesse invadindo uma sombra, cruzando uma porta secreta, penetrando numa área de mistério. Como explicar a mudança na minha letra, a essa altura da minha vida?
De tudo ficou um pouco.
Do meu medo, do teu asco.
Dos gritos gagos.
Da rosa ficou um pouco.
Do meu medo, do teu asco.
Dos gritos gagos.
Da rosa ficou um pouco.
São versos que abrem o poema Resíduo, de Carlos Drummond de Andrade, nosso poeta maior. E, entre todos os versos perfeitos, um se destaca, para mim, como mais que perfeito, inclusive pelo seu ritmo, sua musicalidade:
Fica um pouco de teu queixo
No queixo de tua filha.
No queixo de tua filha.
São resíduos que deixamos para os nossos filhos, que herdamos dos nossos pais. E o passar do tempo vai nos dando uma visão mais clara do que nos transmitem e do que transmitimos. Pode ser um traço físico, como também um hábito ou uma preferência, como gostar de café com leite. Pode ser também uma caligrafia que até então não me pertencia e que era propriedade da minha mãe. Mas que eu, quem sabe, psicografei.
Por que não?
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