Abençoada nudez
JOÃO PEREIRA COUTINHO
FOLHA DE SÃO PAULO - 19/04/11
Em casa, ando despido. Em casa, as mulheres muçulmanas que andem cobertas
ADORO ANDAR despido em casa. Gostaria de o fazer na rua. Por que motivo as autoridades não reconhecem a minha religião panteísta e permitem que eu caminhe por Lisboa, ou por São Paulo, como a deusa natureza me fez? Não haverá aqui um "preconceito"?
Não. Há atentado ao pudor, diz a lei. Mas quem decide o que é pudor? As instituições burguesas e reacionárias do capitalismo decadente?
Verdade: o meu corpo não é um exemplo de perfeição helênica. Tenho a minha celulite, um certo excesso de penugem hominídea (sim, sou da escola Tony Ramos), algumas cicatrizes de batalhas antigas que fariam as delícias do dr. Frankenstein. Mas, francamente, quem é um exemplo de perfeição?
Por outro lado, e esfriando um pouco o meu radicalismo panteísta, entendo que uma sociedade não sobrevive sem um entendimento mínimo sobre a vida em comum.
Não caminhamos despidos. Vestimos uma sunga. Não caminhamos integralmente cobertos. Destapamos a cara. Se a nudez completa é um atentado ao pudor, por que motivo não deverá ser a vestimenta completa?
A França entendeu que sim e resolveu proibir o niqab e a burca nos seus espaços públicos. Quem desobedece à lei paga 150 euros (no mínimo). Quem obriga terceiros a desobedecer paga 30 mil euros e pode passar um ano na cadeia.
O país rachou ao meio: obrigar as mulheres muçulmanas a destapar a cara é um abuso e uma violação dos seus direitos, dizem os críticos.
Então, e os meus direitos, camaradas? Não falo do direito à nudez. Falo do direito a não sentir um arrepio pela espinha abaixo sempre que vejo um exemplar feminino enfaixado como uma múmia, muitas vezes por obrigação patriarcal.
Não é intolerância; é falta de etiqueta. Em casa, ando despido. Em casa, as mulheres muçulmanas que andem cobertas. Como no ditado, amigo não empata amigo.
Mas o espaço público, pelo menos no Ocidente, deve ser um espaço de reconhecimento mútuo, sem o qual não existe confiança nem sociabilidade.
É esse reconhecimento mútuo que faz das nossas sociedades aglomerações de cidadãos, e não de extraterrestres, capazes de habitar e partilhar o mesmo planeta.
Gosto de saber com quem cruzo. Gosto de olhar o rosto de um estranho: de lhe perceber as feições e, sobretudo, as intenções.
A lei francesa é corajosa e corajosamente simbólica. E não apenas porque ela procura preservar o famoso "secularismo" da França e da sua herança iluminista, removendo a religiosidade privada do espaço público. Até porque é duvidoso que o niqab ou a burca sejam sancionados pela religião islâmica.
A lei é corajosa porque o "secularismo" deve ser muito mais do que uma mera separação entre o Estado e a religião.
Uma sociedade secular é também um ponto de encontro onde diferentes concepções de vida não se impõem ou agridem. Estou disponível para ceder na minha nudez panteísta. Agradeço que os outros prescindam do seu fundamentalismo sartorial. A tolerância tem dois sentidos, não apenas um.
Claro que, na discussão do niqab e da burca, muitos dos críticos do presidente Nicolas Sarkozy falam em oportunismo eleitoral. E acusam o pequeno Sarko de pretender roubar votos à Frente Nacional nas eleições do próximo ano.
Os críticos têm alguma razão. Mas não exatamente pelas razões que imaginam. Fato: o partido da sra. Marine Le Pen tem subido em todas as pesquisas com sua retórica anti-imigrantes. E não é de excluir que, num segundo turno, a filha do execrável Jean-Marie Le Pen possa vencer a corrida contra Sarkozy.
Mas é precisamente por isso que uma lei equilibrada é importante agora: para evitar que uma lei intolerante venha depois.
Qualquer pessoa que conheça a história da Europa sabe que a vitória dos extremistas sempre aconteceu quando os moderados deixaram de escutar as preocupações reais da gente comum. A mesma que se mostra inquieta com a "islamização" do seu espaço público. A mesma que apoia esmagadoramente a presente lei. A mesma que estaria disponível para votar em Le Pen (filha). E, pior que isso, a elegê-la para o Palais de l'Élysée.
A lei de Sarkozy não despe apenas o rosto das mulheres muçulmanas. Também despe o populismo xenófobo da extrema-direita. Abençoada nudez.
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