O japonês e o papel de bala
BARBARA GANCIA
FOLHA DE SÃO PAULO - 18/03/11
O japonês costuma pagar um preço alto por abrir mão da sua individualidade em favor do coletivo
CAMARADA TEM à disposição a malha de transporte coletivo mais moderna do mundo. A dois minutos da porta de casa ele toma um trem-bala, que sempre chega e sai no horário e atinge velocidades de até 500km/h e que o levará ao seu trabalho em uma cidade vizinha.
Só que, nesse dia, por conta de um soluço geológico ocorrido há milhares de quilômetros de distância, lá onde Iemanjá manda prender e soltar, ele acaba morrendo afogado. Enquanto lê a edição do dia do "Asahi Shimbum" sentadinho na poltrona do trem-bala.
Para adicionar em surrealismo à sequência de acontecimentos, desta vez não precisamos nem mesmo imaginar a figura de Godzilla sacudindo os prédios de Tóquio ou pisoteando as centrais nucleares. Não necessitamos do blá-blá-blá da militância ecológica de Cinemark, que está usando a ocasião para culpabilizar as vítimas: "Quem mandou mexer com a mãe Natureza?", bradam eles. "Agora os japoneses caçadores de baleias que aguentem a ira de Kami" (divindade do xintoísmo com equivalência a Iemanjá).
Você pode ser fã de "Avatar" ou pode detestar os que tomam partido apaixonado na discussão que separa a humanidade entre presas e predadores. Seja como for, já deu para perceber que nós, os tapuias, e James Cameron e seus conterrâneos, todos fazemos parte de um mesmo grupo. E que os japoneses que vimos nos últimos dias tremendo nas filas, sem saquear uma única loja, sem se desesperarem e capazes de respeitar seus velhos mesmo na situação mais adversa imaginável pertencem a um outro mundo muito distante do nosso.
Não preciso dar "rewind" e chegar às cenas mais degradantes ocorridas nos dias que se seguiram ao furacão Katrina e às enchentes de fim de ano na serra fluminense. Hoje mesmo, no parque próximo a minha casa, vi um casal andando alegremente em uma ciclovia que não chega a comportar uma bicicleta indo e outra vindo em sentido contrário. Será que eles não viram as cenas das vítimas do tsunami em fila, envoltas em cobertores, todos pacificamente esperando por suas tigelas de arroz, pouco ligando para suas vontades pessoais e respeitando a coletividade como se ela fosse uma entidade suprema?
É claro que não terá sido um golpe de pena do general Douglas MacArthur que deu ao Japão sua maravilhosa Constituição logo após a rendição do imperador Hirohito e, junto com ela, a capacidade organizacional da população.
São séculos e séculos se organizando em sociedade, não é fácil aposentar a clava, somos testemunhas vivas disso. Doenças medievais, na forma de peste e tifo, chegam no esteio da onda gigante e do terremoto para testar a maturidade da população mais uma vez. Será que a serenidade dos japoneses vai prevalecer?
O japonês costuma pagar caro por abrir mão da individualidade em favor do coletivo. São os karaokês para extravasar, é aquele uísque todo consumido pelos executivos, nem vamos mencionar a cerveja Kirim tomada aos baldes.
Mas, em um momento como este, nós, que somos tão diferentes, podemos apreciar em nome de que eles se sacrificam tanto. E conseguimos entender que a bagunça toda começa ao jogarmos o primeiro papel de bala no chão.
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