Por enquanto, tudo bem
RAUL VELLOSO
O GLOBO - 10/01/11
Depois de vários anos de queda sistemática da razão entre a dívida pública e o PIB, a ameaça de descontrole na evolução dessa razão voltou a rondar as análises sobre o assunto. Nesse contexto, tem-se lançado mão de receitas não recorrentes, como a antecipação de dividendos de empresas estatais, e até mesmo de formas pouco convencionais de contabilização de receitas não financeiras, como no caso da recente capitalização da Petrobras, com o óbvio inconveniente de colocar em risco a credibilidade dos demonstrativos oficiais.
Fala-se em atingir a meta de 3,1% do PIB para o superávit primário global em 2010, o que asseguraria uma evolução favorável da razão dívida-PIB. Contudo, mesmo se considerarmos a hipótese de cálculo alternativo de maior valor, entre as que circulam nos departamentos de pesquisa dos mercados financeiros, espera-se saldo não maior do que 2% do PIB. No mundo fiscalmente desorganizado de hoje, poucos ligam para esse tipo de problema. Só que o cenário sempre vira.
Existem razões conjunturais e de fundo para a queda dos superávits fiscais. No mundo anterior à crise americana, e puxadas pelo boom internacional, as receitas públicas cresciam acima das despesas. A crise recente levou à queda imediata e generalizada da atividade econômica e da arrecadação de impostos. E, como o crescimento dos gastos públicos (em parte para atenuar o impacto da crise) se acentuou, os superávits desabaram. Para voltar aos superávits anteriores, em teoria a saída é simples. Num quadro de expansão de gastos, as receitas teriam de subir mais que as despesas, o que pode exigir novos impostos. Ou, então, atua-se exclusivamente do lado dos gastos.
Na prática, nada disso é trivial. Primeiro, porque há muito deixou de haver clima propício ao aumento de qualquer imposto. Mesmo nos seus cem dias iniciais de glória o novo governo corre o risco de uma forte mobilização popular anti-CPMF, ainda que tente recriá-la para uma área tão nobre como a de saúde. Segundo, porque a expansão permanente dos gastos correntes está na essência da atuação dos governos, há muitos anos. Mexer nisso é tocar em vespeiro político, ainda que o modelo de crescimento do gasto público corrente, escolhido pelo mundo político para puxar a carruagem da economia brasileira, encerre uma contradição fundamental.
Na raiz da inconsistência está o velho conflito entre a decisão de consumir e a de investir. A opção pelo crescimento do consumo (ou pela queda da taxa de poupança pública), que se está fazendo, em princípio envolve investir menos (por haver menos recursos para tal fim) e implicaria, portanto, que a economia crescesse menos, algo de difícil aceitação pelos políticos. Só que, mais recentemente, a economia tem crescido até mais, mesmo após forte aumento dos gastos correntes. Como se explica isso?
Na verdade, a puxada no consumo, em si, atrai investimento, a fim de atender à maior demanda. Mas no curto prazo o aumento do investimento só se viabilizará se houver ingresso suficiente de poupança de fora, o que requer apreciação cambial, altas importações e déficits externos. Na prática, então, estaremos apenas substituindo poupança interna - pública, no caso - por poupança externa, à custa de efeitos colaterais indesejáveis, como o processo de desindustrialização em curso.
Esse se torna inevitável, pois em algum setor terão de ocorrer déficits externos, sem o que não haverá entrada de poupança externa. E, quanto mais relevante for a área de commodities, que exporta elevados excedentes de produção sobre o consumo interno e é vencedora na geração de divisas, maior a necessidade de "desindustrialização" no resto da economia.
Com base em estimativa precária, a poupança em conta-corrente das administrações públicas (União, Estados e Municípios) se tornou negativa em 2009, depois de ter sido fortemente positiva nos anos setenta. Ou seja, em síntese, o aumento da taxa de crescimento do PIB se viabilizou com a ajuda do quadro externo favorável dos últimos anos (em que pese a crise americana).
Outro subproduto indesejável do modelo de crescimento dos gastos públicos correntes é a necessidade de subir a taxa de juros Selic de tempos em tempos para conter pressões inflacionárias. Isso ocorre mesmo diante da ampliação da oferta de bens que vêm de fora. Gastos públicos correntes mais elevados implicam maior demanda sobre todos os setores da economia, mas especialmente sobre o de bens e serviços não comercializáveis com o exterior, notadamente serviços. E como, por definição, esses não se importam, quanto maior for a demanda, maior a pressão sobre a taxa de inflação.
Com ambiente externo favorável, vai-se levando. E quando o quadro externo mudar?
Se hoje há subprodutos indesejáveis do ingresso atípico de poupança externa, a sua falta significará a necessidade de gerar maior poupança aqui dentro, a começar pelo setor público. O risco é que nessa altura a despesa esteja mais rígida do que nunca e o sacrifício para fazer o ajuste, maior ainda.
RAUL VELLOSO é economista.
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