Sexto Andar
Fernanda Torres
REVISTA VEJA - RIO
A fumaça negra que cobre São Paulo sempre me espanta quando sobrevoo a muralha da serra e chego ao Planalto Paulista. O mesmo acontece quando paro o carro em qualquer cruzamento da megalópole e o aparelho que mede a qualidade do ar estampa um PÉSSIMA para qualquer um ver. Morei em São Paulo na infância e tenho um carinho freudiano pela cidade. Ainda levo meus filhos ao Butantã, como meu pai fazia comigo, e gosto, pasmem, do verde fechado da vegetação paulista quando ela existe. Mas, para alguém que passou a vida inteira cercada pela exuberância natural do Rio, é difícil se acostumar com a concretude de São Paulo. O preço do progresso dos nossos vizinhos foram o trânsito, a poluição, a morte dos rios, do verde, aquela ladainha trágica do desenvolvimento que todo mundo conhece. Vivo no balneário ciente das desvantagens do socialismo moreno, da manemolência, da desordem cívica; mas a natureza carioca é tão poderosa que é capaz de curar angústia, solidão, dor de corno, inveja, raiva, e faz esquecer do atraso medieval que nos acompanha.
Isso até você precisar de um hospital. Há dois anos, escrevi aqui mesmo uma crônica sobre o Hospital Albert Einstein, de São Paulo. Neste ano, voltei para o mesmo 6º andar. Antes, apenas os quartos do canto do corredor de 100 metros de comprimento contavam com pressão positiva, uma maneira de esterilização através da corrente de ar. Agora, todo o andar tem o mecanismo, o que permite aos internos circular livremente. Nove transplantes de medula ocorriam simultaneamente durante o Ano-Novo. No quadro da enfermagem, na sala de convivência, cartas e cartas de pessoas que passaram pelo 6º andar agradeciam a cura. O hospital ganhou novas alas, passarelas, centros de pesquisa e agora parece uma cidade ainda mais impressionante do que me pareceu da primeira vez em que lá estive.
Além do Hospital Albert Einstein, fundado pela Sociedade Israelita Brasileira Albert Einstein, e do Hospital Sírio-Libanês, inaugurado em 1921 por uma associação beneficente de senhoras da primeira geração de sírios e libaneses, a capital paulista abriga diversos outros hospitais de alta qualidade. O Rio tem grandes neurologistas, oncologistas, endocrinologistas, mas nenhum centro hospitalar ou de pesquisa comparável aos de São Paulo. Minto, a Rede Sarah abriu seu centro de atendimento na Barra da Tijuca. Mas o Sarah é focado na neurologia, não cuida de doenças infecciosas, nem de câncer, nem de outras mazelas terríveis. Além disso, o Sarah não é uma iniciativa carioca, ele é um bem-sucedido projeto do Distrito Federal que funciona como um ministério. Sua verba sai diretamente dos cofres da União sem passar pela burocracia, pela politicagem e pelos atravessadores que muitas vezes consomem e desviam os recursos destinados à saúde.
Sei que não temos metade do poderio paulista, mas nossos doutores e pacientes mereciam condições melhores de trabalho. Nestes dois anos em que estive afastada de um centro de terapia intensiva, não pude notar nenhum avanço, nada, nenhum investimento nos hospitais que aqui revisitei. Eles estão congelados no tempo, apenas mais velhos do que estavam há dois anos. A insegurança é imensa. Experimente ter um problema grave durante o Natal e o fim do ano, simplesmente não há para onde correr. Não estou discutindo aqui as condições da saúde pública no Brasil. A Rede Sarah é o exemplo máximo, modelo do que deveríamos ambicionar. Estou falando de hospitais e laboratórios que trabalham com convênios particulares e que mesmo assim não funcionam no Rio. A diferença entre tratar uma doença séria na Guanabara e em São Paulo não está no conhecimento do especialista sobre o que se passa com o enfermo, mas sim na segurança de ter, atrás de si, um apoio hospitalar que o respalde. Por aqui, fala-se na possibilidade de morte. Em São Paulo, nas chances de cura.
Eu não sei se foi a decadência carioca, se foi a falta de espírito filantrópico, se foi descaso das autoridades, eu não sei se foi a avidez por lucro ou o preparo ruim dos profissionais ligados à área, não os médicos, repito, mas a enfermagem, a qualidade do diagnóstico laboratorial. Eu não sei se é um problema de educação, de moral e cívica, eu não sei. Mas o que será que podemos fazer para criar pelo menos um, um, unzinho centro de referência hospitalar no Rio que irradie para o estado uma nova forma de lidar com a saúde? E se, a exemplo da Rede Sarah, propuséssemos uma filial do Sírio ou do Einstein na velha e sofrida Guanabara? Fica aqui a sugestão.
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