Mercosul - retórica e realidade
Rubens Barbosa
O Estado de S.Paulo - 14/12/10
Neste semestre, pela última vez no governo Lula, o Brasil assumiu a coordenação do Mercosul.
O ministro Celso Amorim, em recente discurso em Montevidéu, no Parlamento do Mercosul, reafirmou que a integração da América do Sul é a prioridade número um da política externa brasileira e que o fortalecimento do bloco é uma questão de honra do governo Lula.
Num exercício positivo de transparência para com a opinião pública nacional, nesse pronunciamento e em entrevista recente, Amorim delineou as intenções brasileiras para a reunião presidencial desta semana em Foz do Iguaçu. Disse que é preciso pensar grande e dar um salto qualitativo, com a aprovação de uma série de medidas que venham a definir metas para avançar na conformação plena da união aduaneira, visando à criação de um ainda distante mercado comum.
Foram alinhadas mais de 15 propostas que serão discutidas pelos presidentes dos quatro países membros. O amplo programa repete algumas das propostas apresentadas em dezembro de 2004, quando o governo brasileiro delineou um ambicioso projeto de revitalização do Mercosul - Objetivo 2006 -, aprovado dois anos depois como Programa de Trabalho 2004-2006, com pouco ou nenhum resultado desde então.
Dentre as medidas propostas pelo governo brasileiro caberia mencionar, pelo significado para a consolidação da união aduaneira, a discussão das exceções à Tarifa Externa Comum (TEC) e a definição de metas para sua eliminação gradual, sempre levando em conta as sensibilidades de todos os sócios. Cabe também lembrar o apoio à expansão do comércio de serviços, à negociação de acordo de garantia de investimentos, à adaptação do protocolo de compras governamentais do Mercosul, à necessidade de ser dado tratamento mais favorável aos sócios do que aquele que, isolada ou coletivamente, está sendo conferidos a terceiros países.
Adicionalmente, há uma ampla agenda visando ao aprofundamento dos aspectos sociais, a ser examinada pelo recém-criado Instituto Social do Mercosul, que começará a funcionar em breve em Assunção (Paraguai).
As propostas apresentadas por Amorim são coerentes com a retórica da prioridade que o Brasil atribui ao Mercosul, mas, mesmo aprovadas pelos presidentes na próxima reunião do conselho, parecem estar fadadas a ter destino idêntico ao do programa de 2006. Dificilmente haverá disposição política para levá-las adiante, entre outras razões, porque mudaram as circunstâncias em que o processo de integração hoje se desenvolve na América do Sul e no âmbito do Mercosul.
As realidades políticas e comerciais são muito diferentes das existentes quando da criação do Mercosul, em 1991. Em 1992, quando exerci a função de coordenador nacional, o Brasil fez proposta semelhante para a execução de uma série de medidas no que ficou conhecido como o cronograma de Las Leñas, com resultados insuficientes.
As divergências e diferenças políticas que surgiram com o aparecimento do movimento bolivariano, liderado por Hugo Chávez, e, nos últimos anos, a emergência da China como o primeiro parceiro comercial de muitos países da região, o Brasil incluído, tornaram o exercício de negociação no âmbito do Mercosul mais difícil e com poucas chances de sucesso. O bloco perdeu espaço político para outras instituições, como a Unasul. A crescente projeção externa do Brasil, por outro lado, está tornando o Mercosul e a América do Sul pequenos para os interesses brasileiros.
Das propostas anunciadas, talvez a mais discutível seja a introdução na estrutura do Mercosul de uma figura política que dê um rosto ao grupo. Essa personalidade, na visão do governo brasileiro, deveria ter funções substantivas, com atribuições para propor iniciativas sobre matérias relacionadas ao processo de integração e para articular consensos entre os Estados sobre temas relevantes para o bloco.
Do ponto de vista brasileiro, a proposta de criar uma figura política como presidente do Mercosul ou seu secretário-geral deveria ser mais bem examinada, por ser claramente inconveniente. Não convém ao Brasil, no atual estágio de integração do bloco, cogitar da criação de uma instância com poder de iniciativa. A menos que o cargo esteja sendo pensado para o presidente Lula ou para o ministro Celso Amorim, para atender a interesses políticos de curto prazo, o que parece pouco provável. Só em pensar que o cargo possa ser preenchido por personalidades de outros países membros ou que essa figura possa ser um político venezuelano, depois de completado o processo de adesão de Hugo Chávez ao Mercosul, podemos avaliar o potencial de risco para o Brasil. Como as decisões continuarão a ser tomadas por consenso, não se prevendo nem a discussão e muito menos a instituição do voto ponderado, a tendência será o Brasil ficar isolado nas matérias de real importância para nós.
Penso que o processo de integração regional e sua negociação no âmbito do Mercosul têm de ser revistos à luz das transformações que estão ocorrendo com grande impacto na região. Do ponto de vista do Brasil, o que nos interessa agora é ampliar os acordos comerciais e abrir corredores de exportação no Pacífico para as exportações brasileiras serem mais competitivas no mercado asiático, em particular no chinês. O comércio intra-Mercosul e intrarregional continuará a crescer com ou sem o bloco. O Mercosul político e social terá mais visibilidade do que o comercial. A integração física não apresenta controvérsias nem disputas e poderá avançar com mais rapidez.
O futuro governo poderá continuar a apontar o Mercosul como prioridade máxima na retórica oficial. Na prática, porém, se o Brasil realmente se interessar, os resultados concretos virão da integração física.
EX-EMBAIXADOR EM WASHINGTON (1999-2004), É PRESIDENTE DO CONSELHO DE COMÉRCIO EXTERIOR DA FIESP
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