A inflação dos pobres
Rolf Kuntz
O ESTADO DE SÃO PAULO - 08/12/10
A inflação está sendo especialmente severa para os pobres, neste ano, por causa dos preços da comida. Quanto mais pobre a família, mais ela gasta, proporcionalmente, para se alimentar. O custo da alimentação tem subido em todo o mundo, puxado pela piora nas condições da oferta e pela especulação financeira. Grandes investidores contribuem para a alta das cotações aplicando muito dinheiro em produtos agrícolas e outras commodities. Mantido o cenário, as exportações de soja e derivados poderão render no próximo ano US$ 19,6 bilhões ao Brasil, 15,2% mais que o valor estimado para este ano, segundo a Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais. O aumento das cotações ganha um impulso especial quando os juros são muito baixos, sobram recursos no mercado financeiro e ainda há a perspectiva de novas emissões de dólares. Mas o consumidor fica fora da festa.
Em novembro, subiu 1,33% o índice de preços ao consumidor de baixa renda (IPC-C1) calculado pela Fundação Getúlio Vargas. O indicador acumulou alta de 6,41% no ano e 6,58% em 12 meses. O índice mais amplo (IPC-BR) aumentou 1% no mês, 5,47% no ano e 5,73% em 12 meses. A alimentação tem pesos diferentes para diferentes faixas de renda. Principalmente por isso a inflação dos pobres foi maior que a dos outros grupos em 2010.
Os alimentos ficaram 2,62% mais caros em novembro para as famílias com renda mensal entre 1 e 2,5 salários mínimos, cobertas pela pesquisa do IPC-C1. O custo da alimentação subiu 9,29% para esse grupo em 12 meses.
Para entender o significado real desses números é preciso levar em conta o padrão de consumo dessas famílias. A alimentação representa em média 39,62% de seus gastos habituais. Em outras palavras, de cada R$ 100 desembolsados mensalmente por essas famílias para atender às suas necessidades, quase R$ 40 são destinados à compra de alimentos.
O quadro muda consideravelmente quando se consideram as famílias com renda mensal entre 1 e 33 salários mínimos. A evolução de seus gastos é representada pelo IPC-BR e a alimentação corresponde a 27,49% de seu orçamento de consumo. O contraste fica mais forte quando se examina o padrão do mundo rico. Nos Estados Unidos, o custo da alimentação tem peso próximo de 15% no índice calculado pelo Departamento do Trabalho.
O custo da comida perdeu importância relativa, no Brasil, desde a segunda metade dos anos 80, com os ganhos de produtividade no campo. A modernização do setor, resultante da adoção de novas tecnologias e estimulada pela liberação de preços e pela abertura comercial, eliminou as crises de abastecimento e transformou o País numa das principais potências agrícolas.
Os pesquisadores de índices de preços tiveram de refazer duas ou três vezes suas ponderações, desde o começo da última década, para refletir as mudanças no orçamento familiar. Com o barateamento da comida, sobrou mais dinheiro para despesas de outros tipos e essa mudança foi um dos fatores de expansão do mercado interno de bens industriais. Mas a alimentação continuou pesando muito para as famílias de baixa renda. A melhora de seu padrão de consumo tem dependido em boa parte dos programas de transferência de recursos. O alimento produzido no Brasil é barato pelos padrões internacionais e por isso o País é competitivo. Não há problema de produção, mas há deficiências graves nas condições de emprego dos mais pobres.
Não há, por enquanto, perspectiva de uma reversão nos preços agrícolas em 2011. Se as cotações se mantiverem elevadas, ou até em alta, as contas externas brasileiras serão beneficiadas e as condições de emprego serão favorecidas. Mas continuarão as pressões sobre o custo de vida e isso poderá resultar em sacrifício para muitas famílias.
O problema será pelo menos atenuado se for possível evitar o contágio dos demais preços. As medidas anunciadas na semana passada pelo Banco Central podem contribuir para isso, limitando a expansão do crédito e esfriando um pouco o entusiasmo dos consumidores. Hoje, o Comitê de Política Monetária informará sua nova decisão sobre os juros. Sua avaliação das perspectivas será apresentada em ata oficial na próxima semana. Empresários do comércio e da indústria resistirão, como sempre, a qualquer sinal de aumento de juros. Nenhum deles gasta quase 40% de sua renda - ou mesmo 27% - para alimentar a família. Para eles, a inflação não é tão feia.
*ROLF KUNTZ É JORNALISTA
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